segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Novafala

    “Tem uma palavra em Novafala”, disse Syme, “que não sei se você conhece. Patofala, grasnar feito um pato. É uma dessas palavras interessantes com dois sentidos contraditórios. Quando você aplica a um adversário, é ofensa; aplicada a alguém com quem você concorda, é elogio” (Orwell, George, 1984, página 71).

   Não sei se é o meu lugar de fala grasnar coisas sobre o livro 1984, mas pretendo ser politicamente correto para que o Supremo Ministério Federal da Verdade não me vaporize ou me prenda por crimideia... ou crime de opinião... ou crime de pensamento, dá no mesmo.

   Mas vamos adiante, página 68-69... vamos adiante no raciocínio, não na sequência das páginas, pois o duplipensar exige que se vá indo e voltando: “Você não vê que a verdadeira finalidade da Novafala é estreitar o âmbito do pensamento? No fim teremos tornado o pensamento-crime literalmente impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo. Todo conceito de que pudermos necessitar será expresso por apenas uma palavra, com significado rigidamente definido, e todos os seus significados subsidiários serão eliminados e esquecidos”.

   Percebam, surgindo das sombras, no parágrafo anterior, signo, significado (com seus vários sentidos) e o referente. A redução do vocabulário a palavras, termos, chavões e expressões imbecis; a troca de conceitos por palavras, como Arthur Schopenhauer, em 1813, aproximadamente 135 anos antes da obra 1984, já explicitou com propriedade no livro “Sobre a Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão Suficiente” o problema de se trocar conceitos por palavras.

   Aliás, a burrice e a malícia parecem-me que nasceram com a humanidade (vide Adão e Eva, por exemplo, que caíram no engodo das palavras da serpente), mas não precisamos retornar tanto assim na história. Vamos retornar para meados de 335 A.C., na época de Aristóteles (também não precisamos retornar aos pré-socráticos).

   Aristóteles teve vários embates com os chamados sofistas.

   “Assim como há pessoas que preferem parecer sábios a sê-lo, em vez de o serem mesmo sem parecer, dado que a Sofística é uma sabedoria aparente e não real, e o sofista é o que negocia uma sabedoria aparente e não real, assim é evidente que se lhes torna mais necessário parecer que fazem obra de sabedoria, do que fazer obra de sabedoria sem parecer” (Organon, Elencos Sofísticos, página 11, tradução de Pinharanda Gomes).

   Aristóteles também escreveu, em relação aos sofistas – numa tradução livre: “eles nem lêem o que escrevo, mas estão sempre contestando”.

   Então podemos ver que esse problema vem de longe; e antes que o leitor pense: “Ha, se vem de longe então sempre foi assim, a humanidade é burra e maligna em si”, advirto que isso é duplipensar (defender duas posições antagônicas, contraditórias, ao mesmo  tempo).

   Em relação ao parágrafo anterior onde Aristóteles fala de “parecer sábio a sê-lo”, podemos distorcer isso com o chavão popular: “Não basta ser, tem que parecer que é”. Chavão idiota este tão utilizado por positivistas e afins.

   Vamos reduzindo o vocabulário a chavões idiotas (aliás, todo chavão em si é idiota) e vamos emburrecendo, pois o ser humano se comunica majoritariamente através de palavras (palavra falada e palavra escrita), a gente lê e escreve e a gente fala e escuta. Nos comunicamos também por músicas, filmes, obras de arte, mímica, etc, tudo isso, mas nos comunicamos majoritariamente através das palavras. Orwell observou isso muito bem: “Que coisa bonita, a destruição de palavras! Claro que a grande concentração de palavras inúteis está nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos que também podem ser descartados” (página 67), porém, ele estava se referindo a novafala.

   “Menos e menos palavras a cada ano que passa, e a consciência com um alcance cada vez menor” (página 69). Porém, não é somente a redução do vocabulário, é a redução somada à mudança constante das palavras. Por exemplo, “disforia de gênero” passou a ser “ideologia de gênero” e depois “identidade de gênero”; “dívida histórica” saiu para dar lugar ao “racismo estrutural”, mas você pode continuar usando um ou outro chavão; seja lá o que forem essas coisas e se é que existe o referente delas, seja lá o que essas expressões imbecis representam na realidade, ninguém sabe e quem tentar explicar se perderá numa confusão mental.

   Pensamento e/ou raciocínio, linguagem e comportamento. Quando você altera o significado e o sentido das palavras você consegue direcionar o pensamento e o raciocínio e, por consequência, o comportamento das pessoas. A partir daí as pessoas passam a discutir por três meses até onde entra a língua - uma na garganta da outra - num beijo lésbico de uma campanha do governo, as pessoas passam a repetir “sou liberal na economia e conservador nos costumes” como um mantra, sou didireita, sou diesquerda, etc. E temos a materialização do duplipensar. Duas posições falsamente antagônicas na sociedade porque as pessoas sequer raciocinam sobre o que estão dizendo.

   Reduzir o vocabulário das pessoas e mudar constantemente a língua resulta, invariavelmente e inexoravelmente, em emburrecimento.

   Basta a ver a uniformidade da grande propaganda – a grande propaganda é aquilo que chamam de grande mídia – eu chamo de grande propaganda porque de jornalismo não tem mais nada. Tornaram-se repetidores e propagadores da “Novafala”. A coisa vem pronta de cima de poucos donos que cooptam um ou dois diretores e/ou editores, sendo que o repórter e o apresentador já nem raciocinam mais, executam bovinamente, tipo o Winston e o O’brien reescrevendo a história a mando do partido, cada qual dentro do seu macacão azul e dentro do seu cubículo mental.

   Outro exemplo: pandemia confundiu-se com vacina. Tal onda de pandemia significa tal dose de vacina e, ao mesmo tempo, pode-se utilizar tanto uma expressão quanto a outra.

   Não é à toa que Orwell escreveu: “Winston não conseguia se lembrar sequer a data em que o próprio Partido passara a existir. Não lhe parece que tivesse ouvido a palavra Socing antes de 1960, mas quem sabe na expressão utilizada pela Velhafala – ou seja, “Socialismo inglês” – ela um dia tivesse sido de uso corrente. Tudo se desmanchava na névoa. Às vezes, de fato, era possível apontar uma mentira específica. Não era verdade, por exemplo, que, como afirmavam os livros de história do Partido, o Partido tivesse inventado o avião. Winston se lembrava de que na sua mais tenra infância já existiam aviões. Só que era impossível provar o que quer que fosse. Nunca havia prova de nada” (página 49).

   Socialismo inglês podemos entender por Socialismo Fabiano, aquele socialismo que abandonou a tomada violenta do poder – porém, às vezes se utiliza de alguns para isso, como bois de piranha. É, em suma, o único socialismo, aquele que não tem pressa, vamos aos poucos, comendo pelas beiradas, vamos paulatinamente cerceando as pessoas, vamos esquentando a água da panela aos poucos e o sapo morre sem nem perceber. Às vezes usamos uns malucos revolucionários para agitar as coisas (e não importa se o maluco é didireita, diesquerda, dicentro ou diPQP), o que importa é agitar para desviar a atenção e ainda ganhamos dinheiro, vivemos disso.

   Mas eu quero socialismo para os outros; não quero essa merda para mim e para minha família. Então através da grande propaganda eu vou formando o senso comum, o imaginário popular, o fabulário popular, e vou socando na cabeça das pessoas inúmeras expressões idiotas, chavões, vamos bombardeando de informações erradas, desinformando, em suma, emburrecendo todo mundo, principalmente nós mesmos até que somente exista uma única corrente de pensamento vinda do “Partido”. Mas o “Partido” é capitaneado por pessoas e o ciclo sempre se repete, somente vão mudando os rostos no poder, às vezes um mata o outro sem querer (mas faz parte do "processo"), porém, a mentalidade continua a mesma. O tal sistema permanece o mesmo.

   No fim, tudo se resume numa questão de inteligência e moral. Pessoas burras, inseridas nesse tipo de burrice que leva à canalhice, não tem moral. Decai a inteligência, decai a moral e vice-versa.

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