quinta-feira, 4 de julho de 2019

A Escola de Frankfurt e o Incesto

      No livro “Eros e Civilização - uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud”, de autoria de Herbert Marcuse, um dos expoentes da Escola de Frankfurt, encontramos referências explícitas ao incesto.
     Porém, faz-se necessário dizer que o ensaio “Eros e Civilização”, segundo Herbert Marcuse, "emprega categorias psicológicas porque elas se converteram em categorias políticas”.
     Trata-se de um ensaio - porque não dizer: um êxtase - que pretende interpretar filosoficamente o pensamento de Sigmund Freud.
     Nesta primeira etapa farei uma breve interpretação "filosófica" do pensamento de Marcuse enquanto ele interpreta o pensamento de Freud. Caso o leitor não contenha sua curiosidade e seus instintos freudianos sobre o incesto, pule direto para a segunda etapa.
     1 - O procedimento da urdidura de Marcuse podemos encontrar no seguinte parágrafo da Introdução:
A noção de uma civilização não repressiva será examinada, não como uma especulação abstrata e utópica. Acreditamos que o exame está justificado com base em dois dados concretos e realistas: primeiro, a própria concepção teórica de Freud parece refutar a sua firme negação da possibilidade histórica de uma civilização não repressiva; e, segundo, as próprias realizações da civilização repressiva parecem criar as precondições para a gradual abolição da repressão. Para elucidarmos esses dados, tentaremos reinterpretar a concepção teórica de Freud, segundo os termos de seu próprio conteúdo sócio-histórico (p. 3).

     Marcuse parte do pressuposto que, segundo Freud, a civilização é repressiva e sua própria concepção teórica (de Freud) refuta a sua firme negação da possibilidade histórica de uma civilização não repressiva. Portanto, segundo Marcuse, Freud nega firmemente que a civilização venha a ser não repressiva, porém, a sua própria concepção teórica refuta tal negação. Parece-me um pensamento meio confuso, porém, assim sendo, Marcuse diz que Freud nega a possibilidade histórica de uma civilização não repressiva, mas, segundo a interpretação filosófica de Marcuse, Freud entra em contradição com a sua própria concepção teórica, ou seja, estamos no terreno das interpretações filosóficas e teóricas, beirando ao devaneio lírico. Não sei o que Marcuse entendia como interpretação filosófica.
     E depois Marcuse diz que as realizações da civilização repressiva parecem criar as precondições para que a repressão seja gradualmente abolida. Contudo, Marcuse não especifica no seu anseio quais seriam as realizações da civilização repressiva que parecem criar tais precondições e não cita quais seriam essas precondições. Ainda que tais “realizações da civilização repressiva” sejam as que estão no livro “A Civilização e seus Descontentes (O Mal Estar na Civilização)”, de Freud, sendo estas, realizações intelectuais, artísticas e científicas (p. 36), ainda assim permanecemos no terreno da mais abstrata teoria.
     Portanto, Marcuse afirma que o exame da noção de uma civilização não repressiva está justificado com base em dois dados concretos e realistas, mas faz uma interpretação filosófica e teórica sem especificar as realizações da civilização repressiva e sem especificar as precondições, ou seja, tudo meio vago e genérico. Marcuse diz que o exame não será uma especulação abstrata e utópica, mas faz uma especulação abstrata e utópica no seu ensaísmo. Não sei o que Marcuse entendia como especulação abstrata e utópica e o que ele entendia como dado concreto e realista.
     Talvez as realizações da "civilização repressiva" sejam as realizações que permitiram a Marcuse escrever seu pretenso ensaio. Talvez seu próprio anseio seja uma realização dessa "civilização repressiva". Talvez seu próprio ensaio seja uma das precondições para a abolição da repressão. Isso, por si só, já seria autocontraditório, quase um devaneio lírico, um enlevo parafilosófico.
     Ainda na Introdução, Marcuse diz:
A finalidade do presente ensaio é contribuir para a filosofia da Psicanálise - não para a Psicanálise em si. Move-se exclusivamente no terreno da teoria e mantém-se fora da disciplina técnica em que a Psicanálise se converteu (p. 4).

     Fica bem claro que Marcuse afirma uma coisa (fazer um exame justificado em dados concretos e realistas) e faz outra (especulação abstrata e teórica). E assim ele segue no seu anseio, dizendo uma coisa e fazendo outra. Às vezes, Marcuse diz e faz o que se propõe, mas isto somente confunde ainda mais o leitor incauto. Esta é uma técnica de escrita característica de autores desta laia: a enganação.
     Ainda na Introdução: “Tal procedimento implica oposição às escolas revisionistas neofreudianas”. Marcuse foi de encontro ao pensamento corrente dos revisionistas da época.
     2 - Como o intuito deste texto não é analisar o enliço completo de Marcuse - não tenho esse padecimento e nem essa pretensão -, passo a interpretar os excertos explícitos do enleio no tocante ao incesto. E, utilizando-me do próprio Marcuse, vou mover-me exclusivamente no terreno da teoria. Se ele pode, eu também posso. Sem repressão.
     Na página 51 temos a primeira referência (os negritos a partir de agora são meus):
Através do poder sexual, a mulher é perigosa para a comunidade, cuja estrutura social assenta no medo deslocado para o pai. O rei é massacrado pelo povo, não para que este se torne livre, mas para que possa tomar sobre si um jugo mais pesado, um jugo que o protegerá com mais segurança da mãe.15

O rei pai é chacinado não só porque impõe restrições intoleráveis, mas também porque essas restrições, impostas por uma pessoa individual, não são suficientemente eficazes como uma “barreira ao incesto”, porque não são eficientes para enfrentar e dominar o desejo de regressar para a mãe.16 Portanto, à libertação segue-se uma dominação ainda “melhor”:

O desenvolvimento da dominação paterna para um sistema estatal cada vez mais poderoso, administrado pelo homem, é, assim, uma continuação da repressão primordial, que tem como seu propósito a exclusão cada vez mais vasta da mulher.17

     As notas 15, 16 e 17 são do livro The Trauma of Birth, de Otto Rank.
     Pelo que se depreende da referência acima, as restrições impostas por uma pessoa individual (o pai) não são suficientemente eficazes como uma barreira ao incesto. E o desenvolvimento da dominação paterna para um sistema estatal cada vez mais poderoso, administrado pelo homem, é uma continuação das restrições impostas pelo pai, que tem como seu propósito a exclusão da mulher.
     Portanto, para derrubar o sistema patriarcal deve-se promover o incesto, pois assim se impede que o filho se torne ele próprio pai e patrão. Dessarte, este indivíduo se tornará um átomo solto na civilização, um radical livre que se liga ao crime primordial, e o sentimento de culpa que lhe é concomitante reproduz-se no conflito da velha e da nova geração - filhos contra pais. O indivíduo, carregado de culpa, não constituirá família e, caso constituir, provavelmente não considerará o incesto como um tabu - olha que maravilha!
     A leitura de todo o capítulo da referência em questão (A Origem da Civilização Repressiva [Filogênese]) induz à conclusão acima.
     Na página 57 temos a referência 2, ainda no mesmo capítulo:
A transformação do princípio de prazer em princípio de desempenho, que muda o monopólio despótico do pai em comedida autoridade educacional e econômica, também muda o objeto original da luta: a mãe. Na horda primordial, a imagem da mulher desejada, a esposa-amante do pai, era a imagem de Eros e Thanatos em união imediata, natural. Ela era a finalidade dos instintos sexuais e era a mãe em que o filho desfrutara outrora paz integral, que é a ausência de toda a necessidade e desejo - o Nirvana pré-natal. Talvez o tabu sobre o incesto tenha sido a primeira grande proteção contra o instinto de morte: o tabu sobre o Nirvana, sobre o impulso regressivo para a paz que se ergueu no caminho do progresso, da própria Vida. Mãe e esposa foram separadas, e a identidade fatal de Eros e Thanatos foi, portanto, dissolvida.

     Na horda primordial a imagem de Eros (sexo) e Thanatos (morte) era a imagem da mulher desejada, a esposa-amante do pai que era a finalidade dos instintos sexuais do pai e do filho que desfrutara outrora paz integral no Nirvana pré-natal que é a ausência de toda necessidade e desejo.
     Talvez o tabu sobre o incesto não seja um tabu. Talvez a não promoção do incesto seja a ordem natural das coisas. Para o incesto não ser um tabu ele deve ser praticado por toda a civilização mundial como um todo. Enquanto existir UMA única família que não pratique o incesto, o incesto continuará sendo, na mente de Marcuse e de seus seguidores, um tabu.
     E Marcuse termina o capítulo da seguinte maneira:
No presente nível da civilização, dentro do sistema de inibições recompensadas, o pai pode ser superado sem que a ordem instintiva e social sofra violento abalo; agora, sua imagem e sua função perpetuam-se em cada filho - ainda que este o não conheça. Funde-se com a autoridade devidamente constituída. A dominação ultrapassou a esfera das relações pessoais e criou as instituições para a satisfação ordeira das necessidades humanas, numa escala crescente. Mas é precisamente o desenvolvimento dessas instituições que está abalando os alicerces estabelecidos da civilização. Seus limites interiores aparecem na recente era industrial (p. 58).

     “O pai pode ser superado sem que a ordem instintiva e social sofra violento abalo”. E de que maneira o pai pode ser superado? Através do incesto? Através do "empoderamento" da mulher separando a mãe da esposa? O pai fica com a mãe e o filho fica com a esposa? Ou vice-versa?
     “... agora, sua imagem e sua função perpetuam-se em cada filho - ainda que este o não conheça”. O modo como um filho que não conhece o pai possa vir a ter a imagem e a função deste pai é algo que me escapa.
     Um órfão de pai pode constituir família, mas se o incesto for uma prática comum na civilização inteira, não teremos mais pais nem filhos. Teremos somente sei-lá-o-quê como família. É óbvio que a civilização inteira praticar incesto é impossível, mas a promoção de tais coisas (incesto, pedofilia, destruição da família, criminalização da sociedade [lumpenproletarização], etc) causa confusão na sociedade. Parece-me que o objetivo é a destruição da família dos outros, não da sua própria.
     Na página 176 temos, no capítulo Eros e Thanatos, a referência 3: “O pai hostil é exonerado e reaparece como o salvador que, ao punir o desejo de incesto, protege o ego de seu aniquilamento na mãe”.
     Ora, a mãe não pode punir o desejo de incesto também? Lembremos que Freud denominou o seu "complexo de Édipo" a partir de uma fábula grega.
     As imagens de um futuro livre, em lugar de um passado obscuro, vão além do princípio da realidade patriarcal que mantém ascendência sobre a interpretação psicanalítica. Portanto, para ir além da realidade patriarcal em direção a um futuro livre, faz-se necessária a exoneração do pai hostil para que ele possa reaparecer como o salvador que pune o desejo de incesto para proteger o ego de seu aniquilamento na mãe. Porém, não se levanta a questão de saber se a atitude narcisista-maternal, em relação à realidade, não pode retornar. Pelo contrário, é necessário suprimir essa atitude de uma vez para sempre. É necessário suprimir a atitude de reaparecimento do pai como salvador que pune o desejo de incesto. É necessário acabar com a figura do pai. O homem deve ser um mero produtor e fornecedor de esperma; deve ser visto como um acidente da natureza, sem essência e sem substância.
     E Marcuse termina o capítulo aconselhando os homens a cometerem suicídio:
Os homens podem morrer sem angústia se souberem que o que eles amam está protegido contra a miséria e o esquecimento. Após uma vida bem cumprida, podem chamar a si a incumbência da morte - num momento de sua própria escolha. Mas até o advento supremo da liberdade não pode redimir aqueles que morrem em dor. É a recordação deles e a culpa acumulada da humanidade contra as suas vítimas que obscurecem as perspectivas de uma civilização sem repressão.

     Pelo visto Marcuse nunca soube que o que ele amava estava protegido contra a miséria e esquecimento, e não teve uma vida bem cumprida, pois não chamou para si a incumbência da morte num momento de sua própria escolha. Morreu de infarto - e não de suicídio - aos 81 anos.
     Nas páginas 205-206, no capítulo Crítica do Revisionismo Neofreudiano, temos a quarta e última referência: “O ponto essencial dessa “translação” é que a essência do desejo de incesto não é um “anseio sexual”, mas o desejo de conservar-se protegido, seguro - uma criança”.
     Marcuse fala da reinterpretação ideológica do complexo de Édipo feita por Erich Fromm, que tenta “transladá-lo da esfera do sexo para a esfera das relações interpessoais” e o ponto essencial é que o desejo de incesto não é um anseio sexual.
     Marcuse diz que a interpretação ideológica do complexo de Édipo, por Fromm, implica a aceitação da infelicidade da liberdade, de sua separação da satisfação; e a teoria de Freud implica que o desejo de Édipo é o eterno protesto infantil contra essa separação - "protesto não contra a liberdade, mas contra a liberdade dolorosa e repressiva". Liberdade dolorosa e repressiva?!?!? Será que é desta liberdade que Marcuse fala quando cita o "advento supremo da liberdade"?
     E Marcuse segue no seu deleite: “É primeiro a 'ânsia sexual' pela mãe-mulher que ameaça a base psíquica da civilização; é a 'ânsia sexual' que torna o conflito de Édipo o protótipo dos conflitos instintivos entre o indivíduo e sua sociedade”.
     Ora, Marcuse diz que a ânsia sexual torna o complexo de Édipo, que pode ser adquirido ou não na infância, o protótipo dos conflitos entre o indivíduo e sua sociedade. Marcuse reduz os conflitos entre o indivíduo e sua sociedade a uma simples questão sexual, que pode existir ou não, como se todos os problemas da sociedade viessem da ânsia sexual... que pode existir ou não. Talvez Marcuse introjetou seus desejos em relação à sua própria mãe e depois projetou freudianamente suas próprias ânsias sexuais para a sociedade.
     Não sou um entendido em Freud, mas é do entendimento de todos que a maior parte de sua psicanálise é baseada em conflitos sexuais internos, sendo que escreveu um texto chamado “Algumas Consequências Psíquicas da Diferença Anatômica entre os Sexos”, entre outros. Neste texto, Freud fala da inveja feminina do pênis:
Mesmo após a inveja do pênis ter abandonado seu verdadeiro objeto, ela continua existindo: através de um fácil deslocamento, persiste no traço característico do ciúme. Naturalmente, o ciúme não se limita a um único sexo e tem um fundamento mais amplo, porém sou de opinião que ele desempenha um papel muito maior na vida mental das mulheres que na dos homens e isso se deve ao fato de ser enormemente reforçado por parte da inveja do pênis deslocada.
     Para Freud, o ciúme das mulheres vem da inveja do pênis deslocada - é a inveja que está deslocada, não o pênis. Não obstante as contribuições de Freud para a psicanálise, ele tem momentos risíveis.
     E Marcuse, em seu anseio, faz uma interpretação parafilosófica do pensamento de Freud, sendo que o próprio Freud concebia o pensamento como originário da experiência do sujeito e, para Freud, pensamento e linguagem são dois domínios diferentes que podem ou não se entrecruzar.
     Marcuse interpretou a linguagem de Freud dizendo que interpretou o pensamento... e fez isso entrecruzando com Freud de forma “filosófica” colocando incesto explícito no meio talvez para dar vazão aos seus desejos reprimidos como forma de aplacar seus mais recônditos, sexuados e suados instintos freudianos.
     Talvez Marcuse visse em Freud uma figura paterna e tentou libertar-se do seu complexo de Édipo através do incesto, onde, em uma inversão da inveja do pênis, viu em Freud a figura materna e, como consolo, teve o desejo ardente de que Freud o conhecesse no sentido Bíblico.
     Mas, como eu disse, tudo não passa de uma teoria, tanto de Marcuse quanto minha.

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