terça-feira, 30 de julho de 2019

A Mais Valia de Marx

   Entendendo a mais-valia de Marx. Não entrarei profundamente na mais valia absoluta e na mais valia relativa, mas deixo aqui as conceituações de Marx, que não servem para muita coisa:
Chamo de mais valia absoluta a produzida pelo prolongamento do dia de trabalho, e de mais valia relativa a decorrente da contração do tempo de trabalho necessário e da correspondente alteração na relação quantitativa entre ambas as partes componentes da jornada de trabalho (O Capital, Livro 1, Vol. I, p. 363).
   Vamos tomar como exemplo o atacado e o varejo.  Quando compramos no varejo (de uma até duas ou três, ou mais mercadorias, até um certo número estipulado pelo fabricante e/ou pelo comerciante) a mercadoria tem um determinado valor. Quando compramos pelo atacado, a mercadoria, unitariamente, sai por um valor menor. No caso, segundo Marx, este valor é o valor de troca, posto que o valor de uso é intrínseco à mercadoria, o valor de uso já nasce com a mercadoria. Grosso modo, o valor de uso é a própria mercadoria, é o produto, é o valor que cada um dá à mercadoria não importando seu valor de troca, ou seja, não importando por quanto (em dinheiro ou capital) a pessoa vende ou compra a mercadoria. Algumas vezes o valor de uso é o valor de troca, outras vezes não.
   Ao comprar uma caixa de, por exemplo, água sanitária, o valor unitário (valor de troca, o preço) de cada recipiente é um determinado valor, mesmo eu não concordando com o preço e achando aquele valor (valor de uso para mim) muito caro. Utilizo o exemplo de água sanitária porque é bastante apropriado quando se estuda Karl Marx.
   Ao comprar um recipiente apenas, o valor é maior. Quando estamos dentro de um supermercado que vende por atacado temos uma caixa de água sanitária cujas unidades recipientes tem um determinado valor. Caso eu comprar a caixa toda, obviamente pagarei esse determinado valor. Porém, se eu abrir a caixa e retirar somente um recipiente, o valor deste recipiente aumenta automaticamente.
   Posso dizer, neste ponto, que aí está a mais valia de Marx (o valor excedente), pois, para o fabricante, o valor de produção da água sanitária é o mesmo. Seu custo e seu lucro já estão embutidos neste valor de produção. O preço que pagamos a mais quando levamos um único recipiente em relação a levarmos a caixa toda é, neste sentido, a mais valia de Marx, pois não há nada que justifique financeiramente este aumento no preço.
   Mas podemos dizer que o que justifica este aumento de preço é a quantidade da mercadoria (relação quantitativa entre mais valia e lucro, segundo Marx). Quanto mais compramos, menor preço pagamos. Assim é em praticamente tudo. Compramos uma dúzia de ovos, o preço é um; compramos uma bandeja de ovos, o preço é menor. Compramos um único livro de O Capital, o preço é um; compramos todos os volumes de uma vez só, o preço é menor.
   Obviamente temos, neste processo, os intermediários. Aí a trama se complica. Cada mercadoria tem um ou mais intermediários até chegar no consumidor final, por exemplo, o comerciante dono de mercado que compra no atacado e vende para o consumidor final, é um intermediário. Cada intermediário leva a sua parte aumentando o valor final. Até aí tudo bem. Este é o processo normal desde a produção até a venda final.
   Vemos, então, que temos uma estratificação no processo de troca de mercadorias onde cada camada tem o seu lucro (ou mais valia). Analisando-se assim, isoladamente, podemos chegar à conclusão segura de que a solução seria eliminar os intermediários. Porém, analisando-se a sociedade como um todo, tal solução é inviável pois acabaria em concentração de poder, totalitarismo, fim da humanidade como a conhecemos.
   Poderíamos aventar a possibilidade de que a mais valia seria também o que se chama de especulação, ou seja, aumentar o valor tendo por base uma situação futura e, obviamente, incerta. Por exemplo, a especulação do próprio dinheiro, a usura da qual Sócrates falava, emprestar dinheiro a juros. Teríamos aí, de certa maneira, a mais valia (o valor excedente).
   Vemos, então, que a mais valia não é simplesmente um valor excedente que resulta exclusiva e obrigatoriamente do lucro, posto que o lucro é uma parte financeira do processo de produção e venda. E digo, agora, processo de produção e venda, pois a venda faz parte do processo de produção, pois não teria sentido produzir uma mercadoria sem vendê-la sendo que estamos falando daquilo que Marx chamava de Capitalismo.
   Então, analisando-se neste sentido, a mais valia de Marx existe, porém, ela resulta da falta de moral e da falta de honestidade em cada camada do processo de produção, ou seja, resulta da falta de moral e da falta de honestidade de cada indivíduo envolvido no processo.
   Mais valia, taxa de mais valia, lucro e taxa de lucro são coisas distintas para Marx. Porém, Marx se perde na explicação dessas distinções. Basicamente, lucro, para Marx, é coisa exclusiva do empresário, do capitalista malvado. Ele fez um estudo em O Capital considerando tal estudo de forma geral, mas esqueceu-se de que os negócios feitos por um consumidor no mercado da esquina numa rua de um bairro de uma cidade são diferentes dos negócios entre países e que, no meio disso, tem inúmeros níveis e tipos de negócios que se diferenciam por si só.
   Atirar-se esta expressão - mais valia - de forma vaga e imprecisa na sociedade e ligando-a única e exclusivamente ao lucro, temos que, quando se fala a palavra “lucro” as pessoas automaticamente raciocinam como se lucro fosse uma coisa errada, malvada, mas todo mundo quer ter lucro. Não fosse assim, todos trabalharíamos de graça e todos morreríamos de fome; ou, então, eliminamos o dinheiro e adotamos o processo de escambo total (troca direta de mercadorias total), coisa impossível e até um tanto ingênua atualmente.
   Lucro, neste sentido no qual estou falando, posso dizer que lucro é também o salário do trabalhador. Não fosse assim, então o trabalhador deve transformar-se num capitalista para que possa ter lucro, mas daí voltaremos a toda a discussão de Marx que envolve capital, processo de produção, mais valia, lucro, taxa de lucro, valor de uso, mercadoria, valor de troca, etc, entrando, de novo, num processo sem fim.
   Donde conclui-se: caso você não quer ser um capitalista malvado, então não tenha lucro e mantenha-se a vida inteira na classe dos trabalhadores e seja explorado a vida inteira pelo capitalista malvado, pois no momento em que você tiver lucro, você deixa de ser um trabalhador e passa a ser um capitalista malvado.
   Então, a questão resume-se na resposta da seguinte pergunta: o que é lucro?
   Lucro seria o valor excedente cobrado na mercadoria? Neste caso, então lucro é a mais valia de Marx.
   Neste momento se faz necessário discernir o que é mercadoria para Marx. Basicamente, mercadoria para Marx é tudo, incluindo bens e serviços, e até o próprio ser humano. A força de trabalho também é uma mercadoria no sentido marxiano... ou marxista.
   Então, sendo lucro o valor excedente que um trabalhador cobra de seu patrão, logicamente, este trabalhador está usufruindo da mais valia. E sabemos que mais valia é pecado mortal para Marx. E isto transforma automaticamente o trabalhador num capitalista ganancioso. Um chefe de alguma agremiação de trabalhadores, por exemplo, um sindicato, quando está negociando com os patrões, de certa forma ele está negociando a mais valia (ou lucro) para os trabalhadores, pois a força de trabalho, para Marx, faz parte do processo de produção. Neste momento, “nosso capitalista recobra sua fisionomia costumeira com um sorriso jovial”.
   Obviamente podemos dizer que a mais valia vale somente para o capitalista, não vale para o trabalhador, pois este não tem lucro, tem somente o seu salário e o salário não é lucro. E assim desmanchamos o sorriso jovial do nosso capitalista. Então, a mais valia não está ligada ao lucro, são coisas distintas. E separamos trabalhador de capitalista, pois o capitalista, para Marx, é um não-trabalhador. E, desta forma, separamos em classes financeiras a humanidade que existe em cada ser humano.
   E voltamos à pergunta anterior: o que diabos é lucro?
   Talvez algum leitor saiba me responder essa pergunta, ou, algum leitor com moral e honestidade verá que a resposta dessa pergunta é que lucro é uma coisa individual, pessoal, intrínseca a cada negócio e que depende da satisfação pessoal de cada um dos envolvidos naquele negócio. Mesmo lucro sendo qualquer vantagem, benefício (material, intelectual ou moral) que se pode tirar de alguma coisa, ainda assim, o lucro em si não é malvado. Malvadas são as pessoas que escrevem 2.582 páginas em uma obra que, além de não conseguir responder nada, causam uma confusão imensa na sociedade.

domingo, 28 de julho de 2019

Eu

Temos o "eu ontológico", o "eu cognoscente",
O "eu verdadeiro", o "eu falso",
O "eu em si", o "eu inconsciente",
O "eu como ser", o "eu como ato",

O "eu consciente", o "eu sujeito",
O "eu que nega", o "eu matéria",
O "eu que afirma", o "eu objeto",
O "eu que tanto-faz-como-fez (esse inventei agora").

O "eu penso, logo existo", o "eu existo, logo penso",
O "eu independe" do "eu que depende" (sem evitar o jogo de palavras).
E temos também o "não-eu" que é o "eu" que não sou eu
Que lembra de não esquecer do mundo.
Talvez esqueci de algum"eu".
É que são tantos "eus" que eu mesmo já nem sei quem sou.
Autor: Eu.

sábado, 27 de julho de 2019

Pensamento, Linguagem e Comportamento

   Para nosso estudo, coisa é tudo que há (corpóreo ou incorpóreo) tanto fisicamente quanto em pensamento; objeto é aquilo que se está estudando; sujeito é aquele que estuda o objeto. Uma coisa pode ser um objeto material ou imaterial estudado pelo sujeito. Por exemplo, um ser humano estudando outro ser humano (Paulo estudando Pedro), Paulo é o sujeito do estudo e Pedro é o objeto do estudo, porém, os dois são coisas. O que é esta coisa que estou estudando? O que é esta coisa que está me estudando?
   O conceito de coisa, neste caso, é bastante amplo, por isso faz-se necessário deixar bem claro de qual coisa (em que sentido estamos falando) em cada situação.
   Óbvio é que existe também o significado gramatical da palavra coisa que, basicamente, vem ao encontro do sentido acima. Porém, por uma questão de clarificação, uma coisa enquanto objeto de estudo não significa que estamos coisificando pejorativamente um ser humano no exemplo acima. Fosse assim, então a psicologia, a psiquiatria, a antropologia, etc, coisificam o ser humano, o que é absurdo. Por isso torna-se estritamente necessário evitar a repetição desmesurada da palavra coisa e, quando a usarmos, que fique bem claro seu significado. E este pensar, ou modo de pensar, aplica-se a outras coisas enquanto objetos de estudo.

Pensamento
   Há uma diferença entre o pensar e o pensamento. O pensamento refere-se ao conteúdo, ao objeto no qual pensamos. O pensar é o ato em si. Quando pensamos, pensamos em determinada coisa, em determinado objeto - objeto aqui não é somente um objeto físico -, repetindo em outras palavras: objeto deve ser entendido como a coisa em si e esta coisa pode ser tanto um objeto material quanto um objeto imaterial, por exemplo, respectivamente, cadeira e liberdade. São duas coisas que podem vir a ser objetos de estudo.
   Um objeto de estudo, grosso modo, é a coisa discutida, conversada, estudada, falada, etc. Quando estamos no churrasco de fim de semana discutindo o resultado do campeonato de futebol ou conversando sobre a novela, de certo modo, estes são os nossos objetos de estudo: o resultado do campeonato e a novela.
   O pensamento depende da coisa na qual pensamos, por exemplo, uma árvore (pensamos em uma árvore). O pensar é o ato de pensar em uma árvore, mas podemos pensar em uma cadeira, em uma pedra, em um cavalo, em um ser humano, etc. Podemos pensar duas ou três vezes na mesma árvore, podemos pensar três vezes em três cavalos diferentes, etc. O pensar, em si, enquanto coisa estudada, independe do objeto no qual pensamos, o pensar pensa um pensamento. Não nos deteremos aqui, neste estudo, no pensar.
   Para entendermos melhor o pensamento vamos tentar definir conceito objetivo e conceito subjetivo. Mas antes, precisamos saber o que é conceito.
   Para o nosso entendimento, conceito é aquilo que nos vem à mente (imagens e/ou palavras) quando pensamos em alguma coisa, num objeto material ou imaterial, e serve para organizarmos nosso pensamento. Por exemplo, dez pessoas olhando para a mesma árvore, a imagem mental dessa árvore será a mesma, basicamente, na mente dessas dez pessoas posto que estão olhando para a mesma árvore (independentemente que cada pessoa esteja vendo essa árvore de posições diferentes entre si, por exemplo, as dez pessoas dispostas ao redor da árvore; ou as dez pessoas vendo a árvore de uma mesma posição).
   O pensamento é na árvore que estamos vendo, mas o conceito é sobre a árvore em si ou sobre aquela árvore especificamente.
   Vemos então que, nesse sentido e para o nosso entendimento, o conceito torna-se uma coisa individual e com uma forte base na realidade física, pois estamos percebendo uma coisa física (a árvore). Este é, basicamente, o conceito objetivo. É aquele conceito que fazemos de coisas físicas, coisas que existem fisicamente na realidade, coisas que podemos tocar, cheirar, ver, ouvir e/ou degustar. Não entrarei aqui nas distinções entre realidade, realidade física e realidade metafísica. Limitar-me-ei a dizer especificamente realidade física quando estiver referindo-me às coisas físicas, que existem materialmente.
   O conceito subjetivo refere-se às coisas que não existem na realidade física. Por exemplo: liberdade, igualdade, fraternidade, sistemas políticos, sistemas econômicos, etc. Coisas que não podemos tocar, cheirar, ver, ouvir e/ou degustar, coisas que não podemos perceber diretamente através dos cinco sentidos.
   Obviamente, não estou falando de “conceitos objetivos” e “conceitos subjetivos” no sentido da tradução gramatical do conceito em palavras (faladas ou escritas). Um conceito subjetivo (por exemplo, liberdade) pode ser definido objetivamente em palavras (faladas ou escritas). Mesmo que esta definição do conceito liberdade não seja exata, ainda assim, o conceito traduzido em palavras, gramaticalmente será objetivo.
   Um adendo: o ser humano comunica-se, basicamente, por palavras faladas ou escritas. É óbvio que o ser humano também se comunica de outras formas (exemplo, por imagens, aqui no sentido de figuras, fotos, filmes, etc). Porém, a forma mais usual de o ser humano comunicar-se é através das palavras. Fosse eu tentar comunicar este texto somente através de mímica ou somente através de imagens vemos que se torna uma tarefa praticamente impossível.
   Logo entrarei na diferença entre conceito, descrição e definição.
   Poderia discorrer sobre a diferença entre conceito e imagem, porém, não é objeto deste estudo, pois daí entraremos em algo mais avançado e o nosso intuito é nos atermos ao básico. Mas posso dizer que no pensamento uma imagem pode representar um conceito. Grosseiramente dizendo, às vezes pensamos por imagens e às vezes por palavras. Imagem no sentido de figura mental completa, bem definida. Algumas pessoas pensam mais por imagens e outras pensam mais por palavras. As dez pessoas vendo uma árvore farão uma imagem mental dessa árvore e depois traduzirão essa imagem em palavras (faladas ou escritas). Esta tradução em palavras veremos adiante em descrição e definição.
   Então, conceito é aquela imagem mental abstrata que nos vem à mente quando pensamos, mas conceito também é o pensamento que temos diretamente em palavras. Esta é a duplicidade do conceito. É a isto que dou o nome de conceito para este nosso estudo. Faço isto para evitar confusões como: qual é o conceito de conceito? Esta pergunta está errada, a pergunta correta é: qual é a definição de conceito? Perguntar qual é o conceito de conceito é a mesma coisa que perguntar qual é a liberdade de liberdade, não faz sentido, pois são coisas subjetivas e não queremos entrar num processo de ilusão mental onde terminaremos enlouquecendo.
   Sabendo a diferença básica entre conceitos objetivos e conceitos subjetivos evita-se esse tipo de confusão. Até porque, a definição de conceito já foi dita anteriormente: é aquilo que nos vem à mente (imagens e/ou palavras) quando pensamos em alguma coisa, num objeto material ou imaterial, e serve para organizarmos nosso pensamento.
   Quando o pensamento tem como objeto uma coisa física, uma coisa que existe na realidade física, o seu conceito será objetivo. Quando o pensamento tem como objeto uma coisa que não existe na realidade física o seu conceito será subjetivo.
   Lembrando que, basicamente, objetivo refere-se ao objeto e subjetivo refere-se ao sujeito. Há uma forte relação entre sujeito e objeto no sentido em que um não existe sem o outro. Para existir um objeto de pensamento é necessário existir um sujeito pensante. É a duplicidade sujeito-objeto.
   Deter-me-ei aqui no pensamento em sentido restrito que é aquele no qual o pensamento é considerado como produto da nossa mente. O pensamento em sentido extenso é aquele, basicamente, no qual o pensamento não é produto da nossa mente, ou seja, o pensamento está em toda a realidade (física e metafísica) e nós simplesmente captamos, apreendemos o pensamento.
   Pensamento em sentido restrito e pensamento em sentido extenso podemos encontrar de modo mais aprofundado na obra Lógica e Dialética de Mario Ferreira dos Santos.
   Descrição é o ato de descrever o conceito em palavras (faladas ou escritas). Quando externamos em palavras o conceito estamos fazendo uma descrição ou uma definição do conceito.
   Para descrevermos o objeto do nosso pensamento faz-se necessário tomarmos por base algumas categorias, como As Categorias de Aristóteles. Por exemplo, quando eu pergunto o que é isto? - sendo que eu tenho na mão um lápis -, provavelmente as pessoas responderão: é um lápis. Mas eu posso responder: não perguntei o nome desta coisa, perguntei o que é isto, o que é este objeto que tem o nome de lápis? Não obstante eu me referir à essência do lápis, não é disto que tratarei neste estudo. Estou falando de como posso chegar perto da essência do lápis, o que é este lápis.
   Para a pergunta o que é isto ser respondida temos que organizar nosso pensamento. Para respondermos o que é este objeto que leva o nome de lápis obviamente teremos que primeiro descrever o objeto e aí entram como parâmetros As Categorias de Aristóteles: - É um objeto de uns 20 centímetros de comprimento (quantidade), na cor verde (qualidade), estou segurando verticalmente agora na minha mão (verticalmente, agora, na minha mão, respectivamente, categorias de estado, tempo e lugar) e assim por diante. É óbvio que as categorias são parâmetros que darão o início da descrição. Na descrição temos de fornecer mais informações: é um objeto com um bastão redondo de grafite envolto por uma camada de madeira e assim por diante. Isto é a descrição.
   A definição é a descrição mais a finalidade do objeto; este objeto serve para quê? Então, na definição daremos a descrição e a finalidade do objeto. Isto é a definição.
   Seguindo no exemplo, a definição é toda a descrição do lápis com a sua finalidade, terminaríamos dizendo após a descrição, algo como: este objeto (ou, em sentido mais genérico, esta coisa) serve para escrevermos no papel.
   Aprofundando um pouco o pensamento acima, posso dizer que podemos escrever um livro, uma enciclopédia, partindo da descrição do objeto lápis no sentido de que teríamos que descrever e definir o que é verde, o que é madeira, o que é grafite e assim por diante.
   Imaginemos este exercício na realidade física. Uma pessoa descrevendo o lápis em palavras numa folha de papel e depois entregando esta folha com a descrição para outra pessoa ler. Esta outra pessoa terá que dizer qual é o objeto que foi descrito. Veremos que, se o objeto não for bem descrito, a outra pessoa dirá: olha, acho que é um lápis. Caso a descrição for bem feita, a outra pessoa saberá com um certo grau de certeza que é um lápis.
   Contudo, se dermos a definição do objeto, a outra pessoa saberá com toda a certeza que é um lápis. Imaginemos agora a descrição de um objeto mais complexo, como um carro, sem dizer que estamos descrevendo um carro. Sem colocarmos a finalidade torna-se um pouco mais difícil para a outra pessoa saber com certeza qual objeto é. Mas com a finalidade, que caracteriza a definição, ficará melhor para a outra pessoa perceber qual objeto é. É óbvio que existem coisas que são fáceis de descrever e outras não.
   Em questão de organização do pensamento, quando colocamos a finalidade no início da definição (finalidade+descrição) torna-se muito mais fácil percebermos qual objeto é. Quando colocamos a finalidade no fim da definição, provavelmente teremos certeza de qual objeto é quando chegarmos ao fim da definição (descrição+finalidade).
   Neste ponto do estudo, torna-se óbvio que conceitos subjetivos (por exemplo, igualdade) nem sempre tem uma finalidade específica ou têm várias finalidades e isto pode confundir. Então fica um pouco mais trabalhoso definir conceitos subjetivos, pois estes referem-se às coisas que não existem fisicamente, mas sabemos que existem porque tem um nome e podemos ver seus efeitos e suas consequências na realidade física (por exemplo, liberdade).
   Caso fôssemos fazer o exercício da descrição e da definição, no papel, do conceito liberdade, que é um conceito subjetivo, teremos algumas dificuldades em expressar-nos. Além destas dificuldades individuais, vemos que, definições de conceitos subjetivos, para terem alguma validade, devem ser confrontadas com outras definições de outras pessoas. Definições de conceitos objetivos também são confrontadas com outras definições de outras pessoas, porém, nas definições de conceitos objetivos temos o objeto físico para dirimir as dúvidas e sabermos o que é real ou não.
   Por óbvio torna-se também que estas dificuldades estão relacionadas com o vocabulário de cada pessoa que definirá este ou aquele conceito. Por exemplo, as definições de árvore das dez pessoas não serão exatamente iguais e nem totalmente diferentes ainda que estejam vendo a mesma árvore. Óbvio também é que a percepção de cada pessoa influencia no processo, mas como falei, nosso intuito é nos mantermos no básico, na organização do pensamento.
   Então, basicamente, o conceito está na nossa mente; a descrição e a definição é quando externamos o conceito em forma de palavras. Assim organizamos melhor nosso pensamento.
   Para dirimir a dúvida entre conceito e pensamento digo que o ser humano pensa num objeto, numa coisa, (pensar num objeto é o pensamento), o conceito, dizendo de outro modo, é a definição ainda não externada em palavras. Aí suprimimos também a dúvida entre conceito e definição.
   Então, colocando a coisa numa escala hierárquica do geral para o particular, temos o pensar, o pensamento, o conceito e a definição. A descrição não entra nesta escala, pois a descrição está inserida na definição. Algumas vezes podemos partir do geral para chegarmos no particular, outras vezes podemos partir do particular para chegarmos no geral.
   De uma forma mais prática, em relação ao perguntarmos o que é isto, o que é esta coisa da qual se está falando, eu posso pegar, ver, ouvir, cheirar e/ou degustar? Caso estivermos falando, por exemplo, de cadeira, então é um conceito objetivo, existe fisicamente. Caso estivermos falando de liberdade, então é um conceito subjetivo, não existe fisicamente. A partir daí o processo de raciocínio é diferente em cada caso.
   É necessário perguntar o que é isto, o que é esta coisa, o que significa esta palavra a qual estamos estudando, falando, escrevendo, etc, pois assim começa-se a organizar de forma lógica o pensamento. Obviamente nem sempre precisamos fazer um estudo rebuscado buscando a resposta dessa pergunta, mas temos de, no mínimo, saber do que estamos falando, no mínimo, saber o significado das palavras. E não fique esperando alguém vir contar para você, procure saber, tenha iniciativa, procure no dicionário, pergunte para quem saiba, são tantas opções de informação existentes no mundo! Não fique preso na cadeira, vá em busca da liberdade através da informação.

Linguagem
   Com relação à linguagem, mantendo-se no básico, posso estabelecer como língua a língua portuguesa, a língua alemã, a língua inglesa, etc. Linguagem, para este estudo, refere-se ao modo como nos expressamos em palavras e isto engloba a língua. A linguagem refere-se também, além da língua, à entonação da voz e expressão corporal (gestos e mudanças na face).
   Não entrarei aqui em estudos de linguística, pois é matéria extensa. Meu objetivo é clarificar a relação entre pensamento, linguagem e comportamento. Esta relação é una (de um) e indivisível, é uma trindade. Sabemos que, basicamente, temos o pensamento, a linguagem e o comportamento. Essas três coisas são indivisíveis no sentido de uma afetar a outra. Quando se muda uma, mudam-se as outras duas. A mais fácil de mudar é a linguagem. O pensamento e o comportamento também podem ser mudados diretamente, porém, são mais difíceis de serem mudados.
   A linguagem, sendo o modo como nos expressamos, tendo como base uma determinada língua, é a materialização do pensamento, é o pensamento tornado real, e influencia no pensamento e no comportamento. Dos três (pensamento, linguagem e comportamento), a mais fácil de mudar é a linguagem. Mudar diretamente o pensamento torna-se deveras difícil, pois teremos de agir diretamente na mente. Ações diretas na mente requer isolamento do indivíduo, sozinho ou em grupos reduzidos; requer repetições constantes das mesmas definições e conceitos; requer mudanças das definições e, por conseguinte, dos conceitos; além de outras coisas. É um conjunto de coisas que dependem do objetivo a ser alcançado com a mudança do pensamento.
   Contudo, vemos que “repetições constantes” e “mudanças de definições e conceitos” agem primeiro na linguagem e depois mudam o pensamento. A linguagem é mais fácil de ser mudada para se conseguir mudança de pensamento e/ou comportamento.

Comportamento
   O comportamento refere-se ao modo como agimos na vida, à maneira como procedemos em relação aos outros e à maneira como cada um procede em relação a si mesmo. Um indivíduo estando sozinho pode comportar-se de determinada maneira; estando em um grupo pode comportar-se de outra maneira; estando em outro grupo pode comportar-se de aqueloutra maneira. De certo modo isso é natural em relação ao comportamento em si, como objeto de estudo. Mudamos nossa maneira de agir (nosso comportamento) de acordo com a situação.
   Dando um exemplo: "Conheci ontem uma pessoa de origem humilde, seu nome é João. Conversamos longamente sobre a vida. João falou-me dos seus problemas, de como está angustiado e não consegue resolver tais problemas. Que seus chefes estão pressionando João devido a um serviço mal resolvido no trabalho e isso acarreta problemas em casa".
   À primeira vista, talvez o leitor pense que João é pobre, mas João não é pobre. Ele tem posses. A mudança da palavra “pobre” para a expressão “de origem humilde” causa essa confusão. Humildade é uma virtude, pobreza é uma condição financeira. Ao mudar a linguagem, mudei o conceito em relação à realidade física. Caracterizei que “origem humilde” é uma coisa exclusiva de quem é pobre e, por conseguinte, quem é rico não pode ser humilde. Dei a exclusividade da humildade para a pobreza. Caracterizei também que “de origem humilde” é aquela pessoa coitada com um chapéu ou boné nas mãos dizendo “sim senhor” e “não senhor” para todos. Isso não é humildade, é subserviência, praticamente o contrário de humildade. Humildade é saber reconhecer suas virtudes e seus defeitos e isso independe da condição financeira da pessoa. Uma pessoa nascida rica pode ser de origem humilde, basta ter sido criada com humildade. Humildade em si tem nada a ver com condição financeira.
   Sem entrar nas definições de “rico” e “pobre” - pois há linhas tênues entre tais definições - acredito que o exemplo serviu ao seu propósito. Mudando a linguagem, mudamos o pensamento e o comportamento.
   Não entrarei aqui nas distinções e limites de bom comportamento e mau comportamento, isso também é matéria um tanto extensa.
   O comportamento também pode ser mudado diretamente através de ações práticas. Quando se induz ou se força uma pessoa a adotar um comportamento contrário ou que não corresponda muito à sua índole, a tendência é esta pessoa mudar de comportamento, principalmente se for um adolescente ou um jovem. Adultos também estão sujeitos a esta mudança, porém, a lentidão ou ligeireza da mudança de comportamento, neste caso, se dá de acordo com o grau de instrução, de conhecimento, de sabedoria e de maturidade emocional de cada um. Exemplo, induzir uma pessoa ou várias pessoas de um grupo a adotar um determinado comportamento mediante o pagamento de uma recompensa, seja ela qual for. Esta ou estas pessoas poderão, de início, não aceitar o novo comportamento, mas o farão. Caso o exercício se repita muitas vezes, a tendência é que as pessoas, com o tempo, mudarão de comportamento ou mesclarão o novo comportamento com o comportamento antigo.
   Sobre o comportamento, neste ponto do estudo, não há como se estender.

Final
   As relações entre pensamento, linguagem e comportamento tem o seu fundamento no fato de que nos expressamos, basicamente, através da linguagem falada e da linguagem escrita. Mudando-se a linguagem (aumentando ou diminuindo o vocabulário, ou substituindo-se umas palavras por outras) muda-se o pensamento e, por conseguinte, muda-se o comportamento. Isto é fato.
   Com efeito, a linguagem, tanto falada quanto escrita, é a materialização do pensamento. E o pensamento determina majoritariamente o comportamento. E assim vamos seguindo neste ciclo de mudança desde o nascimento até a morte. Vamos mudando o pensamento, a linguagem e o comportamento. A linguagem, o pensamento e o comportamento. O comportamento, o pensamento e a linguagem.
   Em se tratando de coisas físicas (sensíveis aos cinco sentidos, coisas objetivas) torna-se difícil mudar o nome do que já está nominado. Porém, em se tratando de coisas subjetivas (coisas não físicas) é mais fácil mudar o nome ou a definição da coisa.
   Vemos que, com conceitos subjetivos o processo de nominação e definição da coisa é, basicamente, convenção humana. Por exemplo, liberdade. Não podemos pegar a liberdade, cheirá-la, ouvi-la, degustá-la ou vê-la. Mas podemos encarcerar alguém tirando a sua liberdade física, porém, esse alguém poderá conservar a sua liberdade de espírito.
   Sabemos que atrelado ao nome da coisa (exemplo, lápis), está a definição da coisa (o que é isto chamado lápis). E para chegarmos à definição de uma coisa precisamos analisar a matéria e a forma desta coisa. Porém, a maioria das coisas do mundo conhecemos através da intuição, através dos sentidos. Ao aprendermos, quando crianças, que uma cadeira se chama cadeira, geralmente dizem-nos, “senta ali na cadeira”, sem que seja preciso descrever ou definir: - “Senta ali naquele objeto de madeira com quatro pernas, um assento e um encosto. Isso se chama cadeira”. Aprendemos por intuição que aquela coisa é uma cadeira. E este processo de aprendizado intuitivo faz-nos relacionar automaticamente o nome à coisa e depois não nos preocupamos mais em relacionar o nome à coisa.
   O nome e a definição das coisas físicas representam a coisa em si. Mesmo que coisas físicas tenham o seu nome convencionado (por exemplo, lápis), ainda assim, pelo processo de aprendizado intuitivo a relação cria-se naturalmente e o nome e a definição passam a representar a coisa em si. Assim, torna-se difícil mudar o nome e/ou o conceito e/ou a definição de uma coisa física.
   Ao mudar-se o nome de uma coisa já estabelecida com o seu nome, por exemplo, trocar o nome mesa pelo nome ar para o objeto mesa (chamar uma mesa de ar) nos causará estranheza... talvez o leitor esteja pensando agora numa mesa feita de ar. E, se não pensou, agora está pensando numa mesa de ar pelo simples fato de eu ter repetido a sentença.
   A mudança de nomes somente será possível quando todos que falam a mesma língua aceitarem esta mudança! Mas daí, em decorrência, chamaremos o ar de quê? De mesa? Ou iniciaremos um ciclo interminável de mudança dos nomes das coisas?
   As coisas subjetivas (exemplo, liberdade) têm, basicamente, o seu nome e a sua definição convencionados e, quando mudados, além de causar confusão mental imensa, mudam o pensamento e o comportamento. Mudar o nome e manter a definição de conceitos subjetivos causa confusão mental imensa. Mudar a definição, mesmo que minimamente, e manter o nome também causa confusão mental imensa.
   Outro exemplo: se eu aprendo desde o nascimento que aquela figura masculina em casa chama-se pai e em determinado momento muda-se o nome da figura masculina para mãe, ainda assim a realidade física continuará a mesma, porém, caso eu for uma criança ou um adolescente entrarei invariavelmente em confusão mental.
   Caso eu for ensinado desde o nascimento que aquela figura masculina se chama mãe, no meu conceito a imagem da figura masculina terá o nome de mãe, será mãe. Mas outras pessoas terão o nome pai para a figura masculina. Isso causa confusão na sociedade.
   Ou muda-se o pensar, o pensamento, o conceito e a definição de toda a humanidade de uma vez só ou deixa-se de querer revolucionar as coisas. Porém, caso você seja louco o suficiente para acreditar que pode mudar o pensar, o pensamento, o conceito e a definição de toda a humanidade de uma vez só, então você deve ser internado num hospício. E se você, sabendo que não pode fazer essa mudança de uma vez só, querer mudar aos poucos, ainda assim terá de ser internado, pois esse tipo de mudança forçada, aos poucos, causa somente confusão na sociedade.
   Quando se muda o nome da coisa, obviamente leva-se um tempo até mudar a definição e, por conseguinte, leva-se um tempo até mudar o conceito que esta coisa tinha na mente de cada um. Durante este tempo de mudança, o indivíduo (ou o grupo), ficará com um pensamento duplo na mente, entrará num processo de ilusão mental, de confusão mental. Isso acontece ao tentar mudar somente UM nome, UMA definição ou UM conceito. Imaginem vários nomes, vários conceitos e várias definições sendo mudados ao mesmo tempo em uma sociedade. É a loucura generalizada.
   Aí vemos o problema ao querer revolucionar o pensamento, a linguagem e o comportamento. Essas mudanças devem ser naturais, devem evolucionar e não revolucionar.
   A base das coisas é a realidade física, o mundo físico sensível aos sentidos. Para se chegar à metafísica primeiro reconheça a existência do mundo físico e tente entendê-lo, isso é óbvio. A filosofia parte da realidade física. Depois vai-se avançando, através da imaginação, através da própria filosofia, até chegar na metafísica, além da física, onde a filosofia continua, mas mantém os pés no chão.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Em Defesa do Socialismo

   O livro Em Defesa do Socialismo, de Fernando Haddad, além de não lembrar o Manifesto Comunista, mais parece um ataque ao socialismo do que uma defesa.
   De início, Haddad não compreende qual o socialismo que ele se propõe a defender. Mas até aí tudo bem. É próprio nesse estilo de escrita não deixar bem claro o que se pretende. Como bem disse o Lula: “Não sabemos o tipo de socialismo que queremos”. Talvez Haddad, no seu livro, publicado em 1998, estivesse falando do socialismo científico de Marx e Engels. Talvez estivesse falando do socialismo utópico. Talvez estivesse falando de um novo socialismo que vai acontecer no futuro... e o futuro nunca chega. Vá saber.
   Minha intenção não é esculhambar o livro de Fernando Haddad nem enaltecê-lo, mas realizar uma análise com uma consideração especial e com a necessária sisudez.
   1 - Na introdução, Haddad começa dizendo que o mundo administrado perdeu controle. O Welfare State se desorganizou. E depois coloca questões sobre a perspectiva do mundo, sobre o processo em marcha e sobre o neoliberalismo (a nova ordem) que trouxe uma apaixonada compulsão a anunciar a morte do socialismo e do pensamento crítico.
   E complementa no início do parágrafo final:
Num momento de refluxo do movimento socialista, Marx foi lembrado por um camarada de que, em uma de suas obras, Hegel observa que imediatamente antes que surja algo de qualitativamente novo, o antigo estado recupera a sua essência originária, na sua totalidade simples, ultrapassando todas as diferenças que abandonara enquanto era viável (p.12).

   Refluxo é o que causa quando se lê uma frase dessas que sintetiza o pensamento revolucionário. Antes que surja algo de qualitativamente novo, o antigo estado (um ente subjetivo) que, provavelmente, é vidente, antecipa o futuro e, num passe de mágica, volta ao passado para recuperar a sua essência originária, mesmo sem ter perdido essa essência. Mas essa fica na conta de Hegel.
   No capítulo I - O Legado de Marx, Haddad diz que o principal defeito do movimento socialista até aqui (1998) foi não perceber o quão elásticas são as relações de produção capitalistas, o quão adaptável é o sistema capitalista. Lembrando que não sabemos de qual socialismo Haddad está falando, apesar de que ele usou a expressão “movimento socialista”, que é uma coisa distinta do “socialismo” em si.
   2 - Nesse mesmo capítulo, na página 19, Haddad diz: O conceito de classe social em sentido pleno é corretamente definido, dentro do discurso materialista, pelas relações de distribuição que são expressão imediata das relações de produção.
   Marx, no Manifesto, divide a sociedade em duas grandes classes diametralmente opostas: burgueses e proletários. E depois, Marx redefiniu-se referindo-se a três grandes classes: trabalhadores assalariados, capitalistas e proprietários fundiários. Posso dizer que todas essas são divisões essencialmente financeiras.
   Ora, a estratificação de uma sociedade em classes sociais, como o próprio nome diz, classes SOCIAIS, envolve outros fatores além do financeiro e isso torna praticamente impossível estratificar uma sociedade complexa em classes sociais, pois tal estratificação é muito dinâmica. O termo “social” é concernente a uma sociedade e envolve a cultura, o financeiro, etc. Eu mesmo posso fazer parte de distintas classes: posso ser de classe média financeira e, ao mesmo tempo, posso ser dono de uma microempresa e fazer parte de uma ONG abortista. Em qual sentido sou burguês e em qual sentido sou proletário? E posto que a estratificação em classes sociais é, obviamente, dentro de uma sociedade: em relação a quem sou burguês e em relação a quem sou proletário? Eu mesmo que defino a que classe eu pertenço? Ou deixo para os outros definirem a que classe eu pertenço?
   Porém, como Haddad bem disse, essa divisão de Marx em duas classes (burgueses e proletários), aparentemente não se verificou, pois a realidade é mais complexa e pode muito bem apenas ser mais confusa, se lhe falta o método adequado, o que confirma o que eu disse no parágrafo anterior.
   Mas podemos perguntar: quem estabelece o método adequado, Marx, Haddad ou eu mesmo enquanto participante de uma classe?
   3 - Depois, nas páginas 19, 20 e 21, Haddad estabelece limites de uma dada classe, superior e inferior, e estabelece o critério materialista e conclui:
Resumidamente, portanto, a teoria marxista de classe colocava sob a rubrica de proletariado a massa de trabalhadores que vendia sua força de trabalho diretamente ao capital - industrial, comercial ou financeiro - e o exército industrial de reserva; e colocava sob a rubrica de burguesia os capitalistas, a alta gerência e os proprietários fundiários.

   Portanto, o marxismo se faz e se re-faz da mesma maneira que um indivíduo troca de roupa de baixo. E, no momento que eu digo que a massa de trabalhadores vende sua força de trabalho ao capital, estou dizendo expressamente que é necessário existir trabalhadores e capital, porque um, logicamente, não existe sem o outro. E se um não existe sem o outro, porque cargas d’água um combate o outro?
   4 - Na página 20, chama a atenção o seguinte: Correlativamente, o desempregado cuja força de trabalho não é mais útil ao capital, ou seja, cujas habilidades tornaram-se uma mercadoria sem valor, esse pobre diabo, por não ter o que vender, nem a si mesmo, não pertence ao proletariado.
   A expressão “mercadoria sem valor”, com o meu grifo acima, requer uma análise mais detalhada porque, nas páginas seguintes, Haddad discorre usando os termos mercadoria e valor.
   E nesta análise temos que responder as perguntas: O que é mercadoria para Marx? De qual valor se está falando?
   Para dirimir essa questão, reproduzindo Paulo Freire, fui à Marx:
A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção (O Capital, Livro 1, Vol. 1, pp. 41-42).

   Ou muito me engano, para Marx, qualquer coisa pode ser uma mercadoria. Então um desempregado, esse pobre diabo, não pode tornar-se uma mercadoria sem valor, pois ele pode vender suas habilidades de, por exemplo, criminoso ao capital. Sendo eu um “capitalista”, posso fazer uso do lúmpen-proletariado e comprar sua força de trabalho para satisfazer uma necessidade minha. Haddad deturpou Marx?
   E agora parto do pressuposto de que o valor da mercadoria referido por Haddad é a duplicidade, por serem ao mesmo tempo objetos úteis e veículos de valor... aquela forma natural e a de valor (O Capital, pp. 54-55). E, As mercadorias, recordemos, só encarnam valor na medida em que são expressões de uma mesma substância social, o trabalho humano (O Capital, p.55).
   E o que é o trabalho humano (ou força de trabalho ou capacidade de trabalho) para Marx?
   “Por força de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o conjunto das faculdades físicas e mentais, existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais ele põe em ação toda a vez que produz valores-de-uso de qualquer espécie (O Capital, p. 187).
   Ainda: Assim, a força de trabalho só pode aparecer como mercadoria no mercado, enquanto for e por ser oferecida ou vendida como mercadoria pelo seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de trabalho (O Capital, p. 187).
   Valor-de-uso para Marx:
As mercadorias vêm ao mundo sob a forma de valores-de-uso, de objetos materiais, como ferro, linho, trigo, etc. É a sua forma natural, prosaica. Todavia, só são mercadorias por sua duplicidade, por serem ao mesmo tempo objetos úteis e veículos de valor. Por isso, patenteiam-se como mercadorias, assumem a feição de mercadoria, apenas na medida em que possuam dupla forma, aquela forma natural e a de valor (O Capital, p. 54).

   Portanto, a força de trabalho é uma mercadoria e, por isso mesmo, tem valor.
   Acredito estar plenamente justificado que, para Marx, o lúmpen-proletariado tem sua força de trabalho e pode ser uma mercadoria - ainda que ele desprezasse o lúmpen-proletariado como classe. Adiante veremos, no item 8, que o próprio Haddad, inadvertidamente, contradiz-se e confirma essa justificativa.
   5 - Depois, na página 23, Haddad discorre sobre a emergência de uma nova classe social: a classe dos cientistas. Porém, não consegue definir - segundo seus próprios limites inferior e superior de acordo com o critério materialista -, a quem esta classe pertence, ao capital ou ao trabalhador.
Sem dúvida, o resultado da atividade de pesquisa e desenvolvimento se incorpora às mercadorias. Mas ela não é uma atividade produtiva, no sentido exato da palavra. Ela não produz mercadorias, embora funcione como promotora do aperfeiçoamento do processo de produção de mercadorias (pp. 24-25).

   Como vimos na compreensão de mercadoria de Marx, Haddad está equivocado de novo. A atividade de pesquisa e desenvolvimento é uma atividade produtiva e produz mercadorias, pois, para Marx, a mercadoria é, basicamente, uma coisa que satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza. E a atividade de pesquisa e desenvolvimento se enquadra na compreensão de Marx, pois há força e tempo de trabalho envolvidos no processo. Não sei qual tradição Marxista Haddad está seguindo.
   6 - Ainda na página 25, Haddad ressalta: A rigor, o tipo ideal de agente inovador é o pós-graduado que se submeteu a uma orientação pessoal de alguém que detém uma parcela de conhecimento não totalmente socializado (saber de fronteira), seja por conta do nível de profundidade, seja por conta do grau de especialização.
   Se não me engano, Haddad terminou seu Doutorado em 1996, sendo, portanto, pós-graduado quando escreveu o livro Em Defesa do Socialismo. Será ele o tipo ideal de agente inovador?
   7 - Na página 28 encontramos: Ao esquema de Marx, que descreve as etapas de desenvolvimento da indústria capitalista, deve-se, portanto, acrescentar um estágio adicional. Estaria Haddad deturpando Marx novamente ou somente acrescentando um estágio adicional? Não vou deter-me nessa parte para não tornar meu texto muito extenso, basta ler o livro de Haddad.
  8 - Na página 31, Haddad discorre sobre a emergência, em nível mundial, de um lúmpen-proletariado de tipo novo, camada que não é mais ‘o produto passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade’, como Marx definiu, mas o resultado direto da nova forma de organização capitalista que devem ser encarados como uma verdadeira classe social porque o seu rendimento extraeconômico oriundo da criminalidade, da mendicância, da pequena extorsão, da chantagem familiar, de favores do Estado, etc, é também uma consequência imediata das relações de produção. O que confirma, de novo, agora nas palavras do próprio Haddad, o que eu disse anteriormente sobre o lúmpen-proletariado e seu valor.
   Ainda que, Haddad, na página 20, ao discorrer sobre o desempregado tornar-se uma mercadoria sem valor estivesse se referindo à época de Marx, ainda assim, como vimos, Haddad conceituou o pobre diabo como uma mercadoria sem valor (coisa que, para Marx, é impossível uma mercadoria sem valor).
   E Haddad mesmo classifica o lúmpen como classe, obviamente, segundo seu próprio conceito de classe da página 19. O lúmpen, agora como classe verdadeira, faz parte das relações de produção, portanto, é uma mercadoria. Agora, se o ser humano é uma mercadoria ou não, basta ler a compreensão de Marx.
   9 - Na página 34:
Não obstante, o resultado prático-moral da ‘liberdade’ de que goza o lúmpen e da liberdade de que goza o burguês é o mesmo: um descompromisso, tanto quanto possível, com as regras jurídicas e morais que garantem a coesão social, particularmente as regras democráticas (p. 34).

   Haddad equipara o lúmpen ao burguês dizendo que os dois tem um descompromisso com as regras jurídicas e morais que garantem a coesão social. As regras jurídicas são as mesmas para as duas classes (ou deveriam ser), mas o lúmpen tem um certo tipo de regra moral e o burguês tem outro, são classes diferentes, segundo a teoria de classes proposta por Haddad.
   10 - Na página 35, Haddad diz que arte e técnica não se confundem. Ora, toda arte pressupõe uma técnica. Pintar um quadro requer técnica, mesmo que seja um quadro daquilo que chamam de arte contemporânea conceitual. Até para colocar um monte de fezes no canto de uma sala e chamar isso de arte, requer uma certa técnica na hora de dispor o monte. Para colocar um mictório masculino de ponta-cabeça e chamar de arte, também requer técnica. Um grupo de pessoas correndo em círculos, uma com o dedo enfiado no ânus da outra, também requer uma certa técnica. Aliás, técnica é o substantivo feminino de técnico, que vem do Grego tekhnikós, que é relativo à arte, à ciência ou ao saber, ao conhecimento ou à prática de uma profissão. Portanto, arte e técnica confundem-se já na sua essência, porém, o  ser humano as separa e convenciona suas definições para melhor entendimento. Entendimento este, impossível para certas pessoas.
   11 - Na página 36, final deste capítulo, chama a atenção o seguinte: Caso contrário, nunca será possível isolar a classe dominante num pólo e as demais classes no outro, condição necessária da superação da ordem capitalista (o grifo é meu). Ele está falando da teoria de classes proposta, da divisão em forças produtivas, forças destrutivas e forças criativas.
   Ora, isolando a classe dominante num polo e as demais em outro polo somente irá fortalecer a classe dominante, pois esta possui os meios de ação, os meios de produção... praticamente todos os meios possíveis em relação às demais classes. E isso era assim em 1998 e está pior agora em 2019. Além disso, isolamento, nesse sentido de classes, não combina muito bem com igualdade.
   Esse isolamento, se conseguido, irá provocar um massacre físico entre as classes, ainda mais considerando agora o lúmpen-proletariado como classe verdadeira. Quando, e se, a tão esperada revolução acontecer será pior do que a revolução Francesa; cabeças, braços e pernas irão se despedaçar e rolar.
   12 - Na página 40:
Uma melhor distribuição [de riquezas], resultante da luta entre classes, orienta a produção no sentido de uma maior satisfação das necessidades. Mas isso não resolve o problema de que, sob o capitalismo, dada a gestão privada do processo de inovação tecnológica, a correspondência entre a percepção e a possível fruição não acontece, e a própria luta de classes é alimentada pelo desejo insatisfeito de todos (p. 40).

   Resumindo: enquanto não separar em dois polos (classe dominante e demais classes) a luta de classes continuará, porém, separando em dois polos, a luta de classes também continuará. O socialismo brigando com o capitalismo, pelo que se entende, é um processo infinito que, possivelmente, terminará em carnificina ou na escravização coletiva de fato.
   13 - Na página 41, Haddad discorre sobre a opinião de Marx em relação à organização e distribuição de todo aparato produtivo pelos produtores imediatos organizados em comunas hierarquizadas em forma de pirâmide.
   Ora, hierarquizar em forma de pirâmide é estabelecer classes dominantes em cima de classes dominadas - e quem ficará no topo da pirâmide?
   Não vejo no que o socialismo de Haddad muda em relação ao capitalismo que ele tanto combate. Talvez o que mudará serão as pessoas da classe dominante, mas o sistema, assim proposto, continuará exatamente o mesmo.
   Espero que Haddad, quando chegar a ser classe dominante, por uma questão de coerência, continue propondo o isolamento das duas classes em lados opostos.
   14 - Nas páginas 42 e 43 Haddad fala da lógica do capital e corrobora o que eu disse acima. Ele diz que é necessário sair da lógica do capital, mas sem abrir mão da funcionalidade do aparato político e econômico e da liberdade formal dos indivíduos. Aparato político e econômico é o sistema. Ele não quer abrir mão do sistema, mas o que vem a ser essa liberdade formal é um mistério esotérico.
   E ele continua:
A subversão da lógica do capital passa pelo mercado assim como a subversão da lógica da democracia burguesa passa pela representação política, numa articulação que não simplesmente faz de um o limite do outro por meio de contrapesos e compensações, mas numa articulação por meio da qual eles se interpenetram, subvertendo-se (p.43).

   Pelo que se entende, o socialismo subverte o capitalismo e vice-versa, numa relação de amor, ódio, sexo, drogas e rock and roll, onde o capitalismo entra com amor e rock e o socialismo entra com o resto. Meio complicado isso.
   E depois ele elenca as tarefas: no plano econômico, trata-se de reorientar a produção e a distribuição da renda [redistribuição de riquezas] no âmbito do mercado; no plano político, trata-se de democratizar a definição da pauta política e a informação a ela pertinente no âmbito da representação [democracia representativa] (p. 43).
   Depois Haddad fala que, ao invés de tomar o mercado como um provedor de sinais que indica ao capitalista o que os indivíduos desejam, deve-se colocar no lugar representantes através dos quais os cidadãos devem encontrar uma forma de sinalizar os bens que desejam. De novo, quer trocar umas pessoas da classe dominante por outras, mas a classe dominante continua lá.
   Para tanto, Haddad propõe uma transição do atual capitalismo de sociedade (em 1998) por ações para uma espécie de capitalismo cooperativo que envolve estímulo à cooperativação dos não-proprietários, democratização dos fundos de pensão, públicos ou não, imposto progressivo sobre a propriedade e centralização progressiva nas mãos do Estado democrático do processo de intermediação financeira por meio do controle de crédito.
   O crédito se mostra um mecanismo eficiente de socialização sem que seja necessário expropriar quem quer que seja. Talvez venha daí o fato de a economia do Brasil ser uma economia de crédito concentrada nas mãos dos grandes bancos. Começo a entender o “socialismo” proposto.
   Depois ele fala que, revolucionariamente, o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) quer crédito, apoio técnico e autonomia para organizar suas cooperativas.
   15 - Na página 52, Haddad fala da socialização dos meios de comunicação a partir da criação de cooperativas de jornalistas e artistas e fala da reformulação do ensino básico e da universalização do ensino superior dizendo que essas duas medidas elevariam o patamar cultural da sociedade brasileira. Agora, em 2019, ainda estamos esperando essa elevação sublime.
   16 - Na página 53: Uma reviravolta política exigiria, portanto, uma forma de discurso que deslocasse os sujeitos de suas posições habituais mesmo que no interior de um universo linguístico mais estreito, permitindo-lhes trazer à consciência esses seus impulsos.
   Ele está falando da redução do vocabulário como forma de discurso. Haddad queria elevar o patamar cultural reduzindo o vocabulário. Não vejo como isso é possível.
   17 - Nas páginas 54 e 55, Haddad começa a falar da psicanálise, que a recepção da psicanálise pelos socialistas foi bastante conturbada. Mas que a psicanálise viria a suprir, no seio do marxismo, o degrau faltante entre base econômica e superestrutura ideológica. E que procurou-se extrair da psicanálise sua força crítico-utópica enfatizando-se aqueles elementos que efetivamente projetavam-se para lá do sistema presente, na direção de uma civilização erótica (sem incesto). Que na segunda geração dessa tradição (marxista), a psicanálise é entendida “idealisticamente” como mero reaprendizado gramatical. E que não teria sido explorado suficientemente o potencial emancipador da forma discursiva da psicanálise em política como contraponto do marketing.
   18 - Na página 56, Haddad discorre como o Partido dos Trabalhadores (PT), nos anos 80, conseguiu, em parte, a proeza acima.
Ninguém sabe ao certo como teria sido um governo nacional petista em caso de vitória eleitoral, mas o PT, mais pela forma do que pelo conteúdo do seu discurso, obteve apoio crescente no seio das três classes não-proprietárias que iam, através dele, encontrando compatibilidades de perspectivas (p. 56).

   Agora, em 2019, sabemos como seria e como foi um governo nacional petista.
   E Haddad, termina este capítulo da seguinte maneira: Nesse caso, no lugar dos atuais Estados nacionais concorrentes, ter-se-ia, finalmente, o advento de uma verdadeira comunidade internacional. E esse advento dar-se-ia com a redução do Estado a um mero ofertante de bens públicos, materiais e culturais, desprovido de todo conteúdo político, caso em que não seria mais um corpo destacado que paira sobre a sociedade, mas como algo que se confundiria com ela. E, provavelmente, o partido acima do Estado e da sociedade, segundo o esquema da pirâmide.
   19 - Nas últimas sete páginas de seu livro, Haddad fala do Welfare State nacional e mundial, do socialdemocrata que é um sujeito de boa alma, do neonazismo e do fascismo.

Conclusão
   O livro é escrito em linguagem ambígua: um discurso exotérico que abarca um discurso esotérico. No meu modo de pensar, o livro cumpriu seu papel, pois várias coisas descritas nele foram implementadas no Brasil pelo PT.
   Procurei trazer, no meu texto, alguns pontos que pudessem ser contrapostos de maneira objetiva.
   O que Haddad tentou trazer de novo, em 1998, foi uma teoria de classes dividindo em duas grandes classes: proprietários (burgueses?) e não-proprietários (proletários?). Os proprietários dividem-se em: proprietários e funcionários do capital; e entre os não-proprietários Haddad acrescenta o lúmpen-proletariado formando três classes não-proprietárias.
   Mas como o próprio Haddad disse acertadamente: o capitalismo é um sistema adaptável. E eu acrescento: o tal do socialismo se adapta ao tal do capitalismo e vice-versa numa simbiose promíscua sem fim. Irão os dois se fundir ou se destruir?
   Mas enfim, tudo não passa de uma briga entre pessoas por dinheiro e poder.
   De qualquer maneira, ninguém tem como saber o que virá depois.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Criminalidade

     O governo Bolsonaro completou 6 meses. Com 6 meses de governo já dá para saber a que o governo Bolsonaro veio. O pacote anticrime do Ministro Moro, o qual eu concordo, e devido à entrevista do Ministro Moro onde ele afirmou várias vezes que é preciso investimentos na área de segurança pública, coisa que eu concordo também, devido a isso resolvi escrever estas linhas.

     Sem investimento na área de segurança pública não adianta muita coisa esse pacote anticrime do Ministro Moro. É preciso investir pesado na área de segurança pública. A Polícia Civil e a Polícia Militar estão completamente desmanteladas no Brasil, estão acabadas. E estão acabadas tanto em meios de ação quanto em poder legal.
     A população cresceu e o número de Policiais, de delegacias, de postos da PM não acompanhou.
     Aqui onde moro no interior do Rio Grande do Sul, aqui no bairro e nos bairros adjacentes não tem Delegacia de Polícia. Quando a população precisa registrar uma ocorrência tem que se descolar até o centro. E, em se tratando de crimes comuns (furtos, roubos menores, agressão física, etc), são esses que afetam a população brasileira. Mas as Polícias estão tão desmanteladas que, para o cidadão, muitas vezes, o registro da ocorrência é somente isto: registro de ocorrência. A Polícia não tem como fazer nada porque não tem meios de ação.
     Faz uns 30 anos que não se vê mais patrulhamento decente de PMs nas ruas. Antes você saía na rua e volta e meia topava com uma viatura da PM fazendo o patrulhamento ou topava com dois PMs a pé na rua fazendo o patrulhamento ostensivo. Isso acabou faz tempo. A Polícia foi desmantelada, o número de Policiais não acompanhou o crescimento populacional, mas o número de criminosos aumenta proporcionalmente. E isso é óbvio, pois Policiais são contratados mediante concurso, e criminosos existem desde que o mundo é mundo. À medida que a população cresce é necessário contratar mais Policiais para acompanhar este crescimento. Os criminosos vieram primeiro, a Polícia veio depois.
     Se o Bolsonaro quiser resolver 70% dos problemas do Brasil basta investir maciçamente nas Polícias. E antes que alguém diga que é preciso investir em escolas, eu digo que, no momento atual, para se ter uma ação eficaz e eficiente deve se começar pela segurança pública.
     Os governos existem para investir em quatro áreas: na educação, na saúde, na segurança e na infraestrutura. Mas não tem dinheiro para investir nessas 4 áreas porque a coisa está tão desmantelada nestas 4 áreas que se torna impossível arrumar as 4 ao mesmo tempo. Mas dinheiro tem para investir em uma das áreas. E eu acredito que se deve começar pela segurança pública que é o nosso maior problema. Porque os cidadãos tendo delegacias próximas a sua casa, tendo PMs nas ruas, a população se sentirá mais segura para trabalhar e ganhar a vida.
     Quem combate a criminalidade na sociedade são os Policiais. Nenhum advogado, arquiteto, médico, juiz, etc, ao chegar em casa após um dia de trabalho coloca três ou quatro armas na cintura, dá um beijo na esposa e diz: - "Vou patrulhar o bairro, já volto". Isso é função da Polícia. É para isso que a Polícia existe. Mas, para tanto, a Polícia precisa de investimentos, precisa de treinamento, precisa de meios para cumprir suas funções.
     As nossas Polícias não têm meios para a produção daquilo que se chama “prova técnica”. A prova, juridicamente falando, grosso modo, é o conjunto de indícios juntados durante a investigação e durante o processo. E dentro desse conjunto de indícios temos, basicamente, o que se chama de “prova técnica (prova documental e prova pericial)” e “prova testemunhal”. Porém, as nossas Polícias não têm meios para coleta de provas técnicas. Os inquéritos baseiam-se na prova testemunhal e depois os inquéritos são refeitos no Poder Judiciário. O Juiz toma novamente o depoimento de todos os envolvidos. O acusado pode dizer uma coisa na Delegacia e, depois, pode dizer o contrário perante o Juiz.
     Vou dar um exemplo simples. O cidadão que sai de casa sábado de manhã e volta no domingo à tarde pode encontrar sua casa arrombada e furtada. Tendo Policiais suficientes na Delegacia, um deles pode deslocar-se até a residência do cidadão e bater fotos e tirar as impressões digitais na janela arrombada. Porém, a nossa Polícia Civil sequer tem o pó para recolher as impressões digitais. Essa coleta de impressões daria o início para as investigações caso se encontrasse alguma impressão digital que não fosse de algum morador da casa furtada. Mas sem Policiais suficientes e sem meios de ação, a Polícia não faz nada porque não tem como fazer. O cidadão chega em casa e joga o registro da ocorrência em alguma gaveta.
     E ainda temos a câmara de Gesell (sala com espelho que permite ver de um lado e não ser visto do outro lado), estandes de tiros nas Delegacias Regionais, etc. Coisas necessárias, mas impensáveis aqui no Brasil onde as Polícias têm nada. A Polícia Militar também não tem meios de ação. Não têm viaturas suficientes, não tem gasolina, não têm equipamentos condizentes à função, etc.
     Existe um cálculo de número de Policiais por habitante. Esse cálculo é baseado de acordo com as estatísticas que foram colhidas ao longo do tempo. São 3 a 4 Policiais para cada mil habitantes. Mas isso depende da região também. Em regiões mais violentas é esse parâmetro: 3 a 4 Policiais para cada mil habitantes. Em regiões mais violentas coloca-se mais Policiais Civis e mais Policiais Militares até debelar a criminalidade.
     Nas sociedades atuais, as Polícias têm uma função de suma importância, isto é fato inegável. Investimentos em educação, saúde e infraestrutura são importantes também, mas do jeito que a coisa está, investir-se em alguma dessas áreas não trará benefícios como um todo.
     Vejamos. Investir em educação trará frutos a longo prazo e resolverá grande parte dos problemas, mas somente a longo prazo. Investir em saúde trará frutos imediatos, mas não resolverá os problemas das outras áreas. Investir em infraestrutura também trará frutos imediatos, mas não resolverá os problemas das outras áreas.
     Somente o investimento em segurança pública trará frutos imediatos e afetará as outras três áreas. Na área da educação, trará mais segurança para se trabalhar. Na área da saúde, além da segurança, diminuirá o número de atendimentos por crimes violentos. Na área da infraestrutura, trará mais segurança para se trabalhar.
     O ideal seria investir-se nas quatro áreas, mas a coisa está tão desmantelada no Brasil que se torna impossível investir nas quatro áreas ao mesmo tempo.
     É uma escolha difícil para qualquer governante, mas é necessário começar em alguma área. E eu voto pela segurança pública para a população.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

A Escola de Frankfurt e o Incesto

      No livro “Eros e Civilização - uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud”, de autoria de Herbert Marcuse, um dos expoentes da Escola de Frankfurt, encontramos referências explícitas ao incesto.
     Porém, faz-se necessário dizer que o ensaio “Eros e Civilização”, segundo Herbert Marcuse, "emprega categorias psicológicas porque elas se converteram em categorias políticas”.
     Trata-se de um ensaio - porque não dizer: um êxtase - que pretende interpretar filosoficamente o pensamento de Sigmund Freud.
     Nesta primeira etapa farei uma breve interpretação "filosófica" do pensamento de Marcuse enquanto ele interpreta o pensamento de Freud. Caso o leitor não contenha sua curiosidade e seus instintos freudianos sobre o incesto, pule direto para a segunda etapa.
     1 - O procedimento da urdidura de Marcuse podemos encontrar no seguinte parágrafo da Introdução:
A noção de uma civilização não repressiva será examinada, não como uma especulação abstrata e utópica. Acreditamos que o exame está justificado com base em dois dados concretos e realistas: primeiro, a própria concepção teórica de Freud parece refutar a sua firme negação da possibilidade histórica de uma civilização não repressiva; e, segundo, as próprias realizações da civilização repressiva parecem criar as precondições para a gradual abolição da repressão. Para elucidarmos esses dados, tentaremos reinterpretar a concepção teórica de Freud, segundo os termos de seu próprio conteúdo sócio-histórico (p. 3).

     Marcuse parte do pressuposto que, segundo Freud, a civilização é repressiva e sua própria concepção teórica (de Freud) refuta a sua firme negação da possibilidade histórica de uma civilização não repressiva. Portanto, segundo Marcuse, Freud nega firmemente que a civilização venha a ser não repressiva, porém, a sua própria concepção teórica refuta tal negação. Parece-me um pensamento meio confuso, porém, assim sendo, Marcuse diz que Freud nega a possibilidade histórica de uma civilização não repressiva, mas, segundo a interpretação filosófica de Marcuse, Freud entra em contradição com a sua própria concepção teórica, ou seja, estamos no terreno das interpretações filosóficas e teóricas, beirando ao devaneio lírico. Não sei o que Marcuse entendia como interpretação filosófica.
     E depois Marcuse diz que as realizações da civilização repressiva parecem criar as precondições para que a repressão seja gradualmente abolida. Contudo, Marcuse não especifica no seu anseio quais seriam as realizações da civilização repressiva que parecem criar tais precondições e não cita quais seriam essas precondições. Ainda que tais “realizações da civilização repressiva” sejam as que estão no livro “A Civilização e seus Descontentes (O Mal Estar na Civilização)”, de Freud, sendo estas, realizações intelectuais, artísticas e científicas (p. 36), ainda assim permanecemos no terreno da mais abstrata teoria.
     Portanto, Marcuse afirma que o exame da noção de uma civilização não repressiva está justificado com base em dois dados concretos e realistas, mas faz uma interpretação filosófica e teórica sem especificar as realizações da civilização repressiva e sem especificar as precondições, ou seja, tudo meio vago e genérico. Marcuse diz que o exame não será uma especulação abstrata e utópica, mas faz uma especulação abstrata e utópica no seu ensaísmo. Não sei o que Marcuse entendia como especulação abstrata e utópica e o que ele entendia como dado concreto e realista.
     Talvez as realizações da "civilização repressiva" sejam as realizações que permitiram a Marcuse escrever seu pretenso ensaio. Talvez seu próprio anseio seja uma realização dessa "civilização repressiva". Talvez seu próprio ensaio seja uma das precondições para a abolição da repressão. Isso, por si só, já seria autocontraditório, quase um devaneio lírico, um enlevo parafilosófico.
     Ainda na Introdução, Marcuse diz:
A finalidade do presente ensaio é contribuir para a filosofia da Psicanálise - não para a Psicanálise em si. Move-se exclusivamente no terreno da teoria e mantém-se fora da disciplina técnica em que a Psicanálise se converteu (p. 4).

     Fica bem claro que Marcuse afirma uma coisa (fazer um exame justificado em dados concretos e realistas) e faz outra (especulação abstrata e teórica). E assim ele segue no seu anseio, dizendo uma coisa e fazendo outra. Às vezes, Marcuse diz e faz o que se propõe, mas isto somente confunde ainda mais o leitor incauto. Esta é uma técnica de escrita característica de autores desta laia: a enganação.
     Ainda na Introdução: “Tal procedimento implica oposição às escolas revisionistas neofreudianas”. Marcuse foi de encontro ao pensamento corrente dos revisionistas da época.
     2 - Como o intuito deste texto não é analisar o enliço completo de Marcuse - não tenho esse padecimento e nem essa pretensão -, passo a interpretar os excertos explícitos do enleio no tocante ao incesto. E, utilizando-me do próprio Marcuse, vou mover-me exclusivamente no terreno da teoria. Se ele pode, eu também posso. Sem repressão.
     Na página 51 temos a primeira referência (os negritos a partir de agora são meus):
Através do poder sexual, a mulher é perigosa para a comunidade, cuja estrutura social assenta no medo deslocado para o pai. O rei é massacrado pelo povo, não para que este se torne livre, mas para que possa tomar sobre si um jugo mais pesado, um jugo que o protegerá com mais segurança da mãe.15

O rei pai é chacinado não só porque impõe restrições intoleráveis, mas também porque essas restrições, impostas por uma pessoa individual, não são suficientemente eficazes como uma “barreira ao incesto”, porque não são eficientes para enfrentar e dominar o desejo de regressar para a mãe.16 Portanto, à libertação segue-se uma dominação ainda “melhor”:

O desenvolvimento da dominação paterna para um sistema estatal cada vez mais poderoso, administrado pelo homem, é, assim, uma continuação da repressão primordial, que tem como seu propósito a exclusão cada vez mais vasta da mulher.17

     As notas 15, 16 e 17 são do livro The Trauma of Birth, de Otto Rank.
     Pelo que se depreende da referência acima, as restrições impostas por uma pessoa individual (o pai) não são suficientemente eficazes como uma barreira ao incesto. E o desenvolvimento da dominação paterna para um sistema estatal cada vez mais poderoso, administrado pelo homem, é uma continuação das restrições impostas pelo pai, que tem como seu propósito a exclusão da mulher.
     Portanto, para derrubar o sistema patriarcal deve-se promover o incesto, pois assim se impede que o filho se torne ele próprio pai e patrão. Dessarte, este indivíduo se tornará um átomo solto na civilização, um radical livre que se liga ao crime primordial, e o sentimento de culpa que lhe é concomitante reproduz-se no conflito da velha e da nova geração - filhos contra pais. O indivíduo, carregado de culpa, não constituirá família e, caso constituir, provavelmente não considerará o incesto como um tabu - olha que maravilha!
     A leitura de todo o capítulo da referência em questão (A Origem da Civilização Repressiva [Filogênese]) induz à conclusão acima.
     Na página 57 temos a referência 2, ainda no mesmo capítulo:
A transformação do princípio de prazer em princípio de desempenho, que muda o monopólio despótico do pai em comedida autoridade educacional e econômica, também muda o objeto original da luta: a mãe. Na horda primordial, a imagem da mulher desejada, a esposa-amante do pai, era a imagem de Eros e Thanatos em união imediata, natural. Ela era a finalidade dos instintos sexuais e era a mãe em que o filho desfrutara outrora paz integral, que é a ausência de toda a necessidade e desejo - o Nirvana pré-natal. Talvez o tabu sobre o incesto tenha sido a primeira grande proteção contra o instinto de morte: o tabu sobre o Nirvana, sobre o impulso regressivo para a paz que se ergueu no caminho do progresso, da própria Vida. Mãe e esposa foram separadas, e a identidade fatal de Eros e Thanatos foi, portanto, dissolvida.

     Na horda primordial a imagem de Eros (sexo) e Thanatos (morte) era a imagem da mulher desejada, a esposa-amante do pai que era a finalidade dos instintos sexuais do pai e do filho que desfrutara outrora paz integral no Nirvana pré-natal que é a ausência de toda necessidade e desejo.
     Talvez o tabu sobre o incesto não seja um tabu. Talvez a não promoção do incesto seja a ordem natural das coisas. Para o incesto não ser um tabu ele deve ser praticado por toda a civilização mundial como um todo. Enquanto existir UMA única família que não pratique o incesto, o incesto continuará sendo, na mente de Marcuse e de seus seguidores, um tabu.
     E Marcuse termina o capítulo da seguinte maneira:
No presente nível da civilização, dentro do sistema de inibições recompensadas, o pai pode ser superado sem que a ordem instintiva e social sofra violento abalo; agora, sua imagem e sua função perpetuam-se em cada filho - ainda que este o não conheça. Funde-se com a autoridade devidamente constituída. A dominação ultrapassou a esfera das relações pessoais e criou as instituições para a satisfação ordeira das necessidades humanas, numa escala crescente. Mas é precisamente o desenvolvimento dessas instituições que está abalando os alicerces estabelecidos da civilização. Seus limites interiores aparecem na recente era industrial (p. 58).

     “O pai pode ser superado sem que a ordem instintiva e social sofra violento abalo”. E de que maneira o pai pode ser superado? Através do incesto? Através do "empoderamento" da mulher separando a mãe da esposa? O pai fica com a mãe e o filho fica com a esposa? Ou vice-versa?
     “... agora, sua imagem e sua função perpetuam-se em cada filho - ainda que este o não conheça”. O modo como um filho que não conhece o pai possa vir a ter a imagem e a função deste pai é algo que me escapa.
     Um órfão de pai pode constituir família, mas se o incesto for uma prática comum na civilização inteira, não teremos mais pais nem filhos. Teremos somente sei-lá-o-quê como família. É óbvio que a civilização inteira praticar incesto é impossível, mas a promoção de tais coisas (incesto, pedofilia, destruição da família, criminalização da sociedade [lumpenproletarização], etc) causa confusão na sociedade. Parece-me que o objetivo é a destruição da família dos outros, não da sua própria.
     Na página 176 temos, no capítulo Eros e Thanatos, a referência 3: “O pai hostil é exonerado e reaparece como o salvador que, ao punir o desejo de incesto, protege o ego de seu aniquilamento na mãe”.
     Ora, a mãe não pode punir o desejo de incesto também? Lembremos que Freud denominou o seu "complexo de Édipo" a partir de uma fábula grega.
     As imagens de um futuro livre, em lugar de um passado obscuro, vão além do princípio da realidade patriarcal que mantém ascendência sobre a interpretação psicanalítica. Portanto, para ir além da realidade patriarcal em direção a um futuro livre, faz-se necessária a exoneração do pai hostil para que ele possa reaparecer como o salvador que pune o desejo de incesto para proteger o ego de seu aniquilamento na mãe. Porém, não se levanta a questão de saber se a atitude narcisista-maternal, em relação à realidade, não pode retornar. Pelo contrário, é necessário suprimir essa atitude de uma vez para sempre. É necessário suprimir a atitude de reaparecimento do pai como salvador que pune o desejo de incesto. É necessário acabar com a figura do pai. O homem deve ser um mero produtor e fornecedor de esperma; deve ser visto como um acidente da natureza, sem essência e sem substância.
     E Marcuse termina o capítulo aconselhando os homens a cometerem suicídio:
Os homens podem morrer sem angústia se souberem que o que eles amam está protegido contra a miséria e o esquecimento. Após uma vida bem cumprida, podem chamar a si a incumbência da morte - num momento de sua própria escolha. Mas até o advento supremo da liberdade não pode redimir aqueles que morrem em dor. É a recordação deles e a culpa acumulada da humanidade contra as suas vítimas que obscurecem as perspectivas de uma civilização sem repressão.

     Pelo visto Marcuse nunca soube que o que ele amava estava protegido contra a miséria e esquecimento, e não teve uma vida bem cumprida, pois não chamou para si a incumbência da morte num momento de sua própria escolha. Morreu de infarto - e não de suicídio - aos 81 anos.
     Nas páginas 205-206, no capítulo Crítica do Revisionismo Neofreudiano, temos a quarta e última referência: “O ponto essencial dessa “translação” é que a essência do desejo de incesto não é um “anseio sexual”, mas o desejo de conservar-se protegido, seguro - uma criança”.
     Marcuse fala da reinterpretação ideológica do complexo de Édipo feita por Erich Fromm, que tenta “transladá-lo da esfera do sexo para a esfera das relações interpessoais” e o ponto essencial é que o desejo de incesto não é um anseio sexual.
     Marcuse diz que a interpretação ideológica do complexo de Édipo, por Fromm, implica a aceitação da infelicidade da liberdade, de sua separação da satisfação; e a teoria de Freud implica que o desejo de Édipo é o eterno protesto infantil contra essa separação - "protesto não contra a liberdade, mas contra a liberdade dolorosa e repressiva". Liberdade dolorosa e repressiva?!?!? Será que é desta liberdade que Marcuse fala quando cita o "advento supremo da liberdade"?
     E Marcuse segue no seu deleite: “É primeiro a 'ânsia sexual' pela mãe-mulher que ameaça a base psíquica da civilização; é a 'ânsia sexual' que torna o conflito de Édipo o protótipo dos conflitos instintivos entre o indivíduo e sua sociedade”.
     Ora, Marcuse diz que a ânsia sexual torna o complexo de Édipo, que pode ser adquirido ou não na infância, o protótipo dos conflitos entre o indivíduo e sua sociedade. Marcuse reduz os conflitos entre o indivíduo e sua sociedade a uma simples questão sexual, que pode existir ou não, como se todos os problemas da sociedade viessem da ânsia sexual... que pode existir ou não. Talvez Marcuse introjetou seus desejos em relação à sua própria mãe e depois projetou freudianamente suas próprias ânsias sexuais para a sociedade.
     Não sou um entendido em Freud, mas é do entendimento de todos que a maior parte de sua psicanálise é baseada em conflitos sexuais internos, sendo que escreveu um texto chamado “Algumas Consequências Psíquicas da Diferença Anatômica entre os Sexos”, entre outros. Neste texto, Freud fala da inveja feminina do pênis:
Mesmo após a inveja do pênis ter abandonado seu verdadeiro objeto, ela continua existindo: através de um fácil deslocamento, persiste no traço característico do ciúme. Naturalmente, o ciúme não se limita a um único sexo e tem um fundamento mais amplo, porém sou de opinião que ele desempenha um papel muito maior na vida mental das mulheres que na dos homens e isso se deve ao fato de ser enormemente reforçado por parte da inveja do pênis deslocada.
     Para Freud, o ciúme das mulheres vem da inveja do pênis deslocada - é a inveja que está deslocada, não o pênis. Não obstante as contribuições de Freud para a psicanálise, ele tem momentos risíveis.
     E Marcuse, em seu anseio, faz uma interpretação parafilosófica do pensamento de Freud, sendo que o próprio Freud concebia o pensamento como originário da experiência do sujeito e, para Freud, pensamento e linguagem são dois domínios diferentes que podem ou não se entrecruzar.
     Marcuse interpretou a linguagem de Freud dizendo que interpretou o pensamento... e fez isso entrecruzando com Freud de forma “filosófica” colocando incesto explícito no meio talvez para dar vazão aos seus desejos reprimidos como forma de aplacar seus mais recônditos, sexuados e suados instintos freudianos.
     Talvez Marcuse visse em Freud uma figura paterna e tentou libertar-se do seu complexo de Édipo através do incesto, onde, em uma inversão da inveja do pênis, viu em Freud a figura materna e, como consolo, teve o desejo ardente de que Freud o conhecesse no sentido Bíblico.
     Mas, como eu disse, tudo não passa de uma teoria, tanto de Marcuse quanto minha.