Ele saiu apressado de casa de manhã cedo atrasado e pisou na bosta do chão. Ela assemelhava-se a abacate maduro amassado, meio verde meio
amarelado. Deu uma breve escorregadela, mas não caiu não. O fedor das fezes
infestou-lhe as fossas nasais. Aprumou-se, foi até o pátio do vizinho (o único
da rua que não tinha cerca ou muro) e passou várias vezes o pé na pouca grama do
vizinho para limpar a sola e as bordas do sapato. Apoiando-se numa perna e
manejando o pé do sapato sujo da outra, para limpá-lo nos pedaços de grama, quase o fez
cair de novo. Apesar de já ter uma certa experiência nesta prática de merda, —
pois não é a primeira vez que pisa nela —, essas coisas não se chegam à
perfeição nem praticando mil vezes. Aprumou-se novamente, terminou o serviço de
limpeza e seguiu seu caminho.
A pasta, com seu conteúdo mal organizado, em uma das mãos e o
terno barato meio amarrotado indicava que vivia sozinho, talvez, no máximo, na
companhia de uma mulher um pouco desleixada quanto ele. Era um sujeito normal,
comum, um pouco azarado (segundo ele mesmo se julgava)... meio chato, tedioso (segundo
os outros o julgavam).
Ele saía pensando, meio desconfiado, que o vizinho é quem
lhe proporcionava os montes no qual pisava em frente da sua casa, — praticamente
todo mês —, um monte enfeitando a sua entrada. Mas não ligava, tinha outros
problemas mais importantes para pensar, problemas normais de um cidadão normal.
Mas a sua normalidade, mal sabia ele, terminava hoje.
O pacato cidadão (e a pacata cidadã), como todo pacato
cidadão, está sempre pronto a explodir em revolta. Basta uma coisa simples para
a explosão de raiva: um olhar de atravessado, meio de soslaio; uma palavra mal
dita; um pensamento errado; um julgamento mal feito; um esbarrão na calçada;
uma furada de fila; um jogo perdido; o preço da gasolina; o fim da novela; a
dor de uma perda; um amor não correspondido; uma pisada na merda; uma briga no
trânsito; a cura que não veio de uma doença congênita... enfim, são várias
coisas que podem ser o estopim.
O barril está sempre cheio de pólvora, mas é preciso deixá-lo
quieto, não se pode agitá-lo. É como pisar em ovos para não os quebrá-los. É
preciso muita calma nestes momentos. Mas o processo todo é meio incerto. A
psicologia interna do ser humano cidadão é complexa. Uma simples análise
superficial não é suficiente para perscrutar os meandros da psique humana. São necessários anos de
psicanálise para consertar os defeitos psicológicos e psiquiátricos do paciente,
bem como consertar a casa do psicanalista, comprar seu carro, fazer suas
viagens de férias, etc.
Mas psicanálise, para o pacato cidadão (e para a pacata
cidadã), resume-se nas conversas com os colegas de trabalho, com os familiares
(se os tiver) e com eventuais conhecidos na rua, na fila do banco, no assento
do ônibus, na briga do trânsito... Todos os pacatos cidadãos (e as pacatas
cidadãs) são psicanalistas e pacientes ao mesmo tempo, com a diferença de que
não cobram pelos seus conselhos —, os dão de graça e, às vezes, sem ninguém
solicitar. Aliás, este é outro estopim: conselhos não solicitados produzem uma
resposta devida: meta-se com a sua vida! E a bagunça está iniciada.
O nosso cidadão de classe média, com o sapato meio sujo
ainda, meteu-se dentro do seu carro de classe média e enfiou-se no seu
tradicional caminho rotineiro. Não obstante algumas árvores que circundavam a
via de tráfego e traziam alguma beleza estética, o caminho todo parecia meio
feio. As casas e os prédios com suas arquiteturas desencontradas, poucas bem
feitas, a maioria mal acabadas, davam a impressão de um cenário lúgubre. O
cidadão até saia de casa, às vezes, alegre, mas no trajeto se deprimia. Ligava
o som do carro para ver se se animava, mas a alegria somente vinha em forma de
esporádicas risadas. No conjunto, tudo era deprimente.
Nosso cidadão de classe média, meio inteligente, teve
sucesso médio na vida. Pagava a maioria de suas contas, às vezes atrasava
poucas, mas depois as colocava em dia e assim ia vivendo como bem podia. Sonhava
em ter sucesso... um dia! Desejava que esse sucesso não durasse apenas um único
dia, mas que fosse permanente. Quinze minutos de fama não lhe eram suficientes.
Almejava mais. Daria sua vida por uma vida de sucesso. Faria um pacto com o
diabo, desde que, depois, pudesse passar a perna nele para não levar o contrato
a cabo.
— “Entregar a alma não deve ser uma coisa muito agradável”,
pensava ele. Ser dilacerado eternamente no inferno não valia a pena por uma
vida passageira de sucesso.
— Mas que diabos! Nem sei se o céu ou o inferno existem!
Mas na lógica de que existem, daria para tentar um contrato de
gaveta com o capeta e depois entrar com um recurso no judiciário do céu para
reaver seu precioso bem: a sua alma. E, para ser justo, aceitaria dar, no fim
do processo, uma compensação ao satanás: talvez um pedaço da alma a lhe ser
restituída antes do fim da eternidade. Seria uma troca justa no seu modo de
pensar. Afinal, a sua vida já era quase um inferno, que mais o diabo podia
querer? A sua alma inteira?
Seus pensamentos foram interrompidos por uma freada brusca.
Um cachorro vira-latas de rua atravessou seu caminho. Seu bom reflexo salvou
uma vida, mas estragou seu carro. O motorista que vinha atrás não teve o mesmo
bom reflexo e chocou-se na traseira. Após uma breve discussão, — trocas de
insultos com seus respectivos pedidos de desculpas —, acertaram-se, trocaram
dados, endereços pessoais, telefones e seguiram seus caminhos para não
atrapalhar o trânsito, afinal, os danos não haviam sido consideráveis pois estavam
em baixa velocidade. Chamar a polícia para quê? Perder mais tempo ainda não
estava em seus planos. Já estava atrasado para o trabalho. A idéia de usar essa
desculpa para não ir trabalhar lhe era atrativa e lhe passou pela cabeça por
um brevíssimo instante, sendo logo esquecida.
O motorista que acertou sua traseira — pensou ele — era um
potencial amigo e não podemos desprezar os futuros amigos. E a culpa não foi
dele, apesar de que a culpa é sempre de quem bate atrás. Porém, nosso cidadão
de classe média sempre tem aquela esperança interna de quebrar os paradigmas da
sociedade, de quebrar as regras contratuais não explícitas vigentes, e assim,
ter um momento de generosidade, pois a generosidade faz com que nos sintamos
grandes. E foi assim que ele se sentiu no momento ao perdoar o motorista
traseiro: um grande ser humano.
Ao chegar ao trabalho, enfrentou os problemas de sempre:
estacionamento, colegas mal-humorados, a estafante rotina, café frio, a
demorada espera para o fim do expediente, almoço em tempo reduzido, um chefe
intolerante, outro chefe bonzinho, subordinados que lhe achavam ser um chefe
intolerante, outros subordinados que lhe achavam ser um chefe bonzinho, e assim
ia levando a rotina recorrente.
Mal sabia ele que este era seu último dia.
Ao retornar a casa, voltando pelo mesmo caminho deprimente,
encontrou a pacata cidadã mulher do seu vizinho lhe esperando em frente. Ele
parou o carro na entrada e desceu para conversar com ela. Aos berros, ela lhe disse que
estava farta, que já tinha lhe avisado para não mais limpar o sapato no pátio dela. Sacou de um revólver e lhe deu seis tiros no peito.
O estopim fora acesso de manhã e passou o dia inteiro
queimando na cabeça da vizinha.
O barril explodiu em cheio no peito do
cidadão... seis vezes... e ele caiu morto com o sapato meio sujo ainda.