sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O Conto do Barril


   Ele saiu apressado de casa de manhã cedo atrasado e pisou na bosta do chão. Ela assemelhava-se a abacate maduro amassado, meio verde meio amarelado. Deu uma breve escorregadela, mas não caiu não. O fedor das fezes infestou-lhe as fossas nasais. Aprumou-se, foi até o pátio do vizinho (o único da rua que não tinha cerca ou muro) e passou várias vezes o pé na pouca grama do vizinho para limpar a sola e as bordas do sapato. Apoiando-se numa perna e manejando o pé do sapato sujo da outra, para limpá-lo nos pedaços de grama, quase o fez cair de novo. Apesar de já ter uma certa experiência nesta prática de merda, — pois não é a primeira vez que pisa nela —, essas coisas não se chegam à perfeição nem praticando mil vezes. Aprumou-se novamente, terminou o serviço de limpeza e seguiu seu caminho.
   A pasta, com seu conteúdo mal organizado, em uma das mãos e o terno barato meio amarrotado indicava que vivia sozinho, talvez, no máximo, na companhia de uma mulher um pouco desleixada quanto ele. Era um sujeito normal, comum, um pouco azarado (segundo ele mesmo se julgava)... meio chato, tedioso (segundo os outros o julgavam).
   Ele saía pensando, meio desconfiado, que o vizinho é quem lhe proporcionava os montes no qual pisava em frente da sua casa, — praticamente todo mês —, um monte enfeitando a sua entrada. Mas não ligava, tinha outros problemas mais importantes para pensar, problemas normais de um cidadão normal.
   Mas a sua normalidade, mal sabia ele, terminava hoje.
   O pacato cidadão (e a pacata cidadã), como todo pacato cidadão, está sempre pronto a explodir em revolta. Basta uma coisa simples para a explosão de raiva: um olhar de atravessado, meio de soslaio; uma palavra mal dita; um pensamento errado; um julgamento mal feito; um esbarrão na calçada; uma furada de fila; um jogo perdido; o preço da gasolina; o fim da novela; a dor de uma perda; um amor não correspondido; uma pisada na merda; uma briga no trânsito; a cura que não veio de uma doença congênita... enfim, são várias coisas que podem ser o estopim.
   O barril está sempre cheio de pólvora, mas é preciso deixá-lo quieto, não se pode agitá-lo. É como pisar em ovos para não os quebrá-los. É preciso muita calma nestes momentos. Mas o processo todo é meio incerto. A psicologia interna do ser humano cidadão é complexa. Uma simples análise superficial não é suficiente para perscrutar os meandros da psique humana. São necessários anos de psicanálise para consertar os defeitos psicológicos e psiquiátricos do paciente, bem como consertar a casa do psicanalista, comprar seu carro, fazer suas viagens de férias, etc.
   Mas psicanálise, para o pacato cidadão (e para a pacata cidadã), resume-se nas conversas com os colegas de trabalho, com os familiares (se os tiver) e com eventuais conhecidos na rua, na fila do banco, no assento do ônibus, na briga do trânsito... Todos os pacatos cidadãos (e as pacatas cidadãs) são psicanalistas e pacientes ao mesmo tempo, com a diferença de que não cobram pelos seus conselhos —, os dão de graça e, às vezes, sem ninguém solicitar. Aliás, este é outro estopim: conselhos não solicitados produzem uma resposta devida: meta-se com a sua vida! E a bagunça está iniciada.
   O nosso cidadão de classe média, com o sapato meio sujo ainda, meteu-se dentro do seu carro de classe média e enfiou-se no seu tradicional caminho rotineiro. Não obstante algumas árvores que circundavam a via de tráfego e traziam alguma beleza estética, o caminho todo parecia meio feio. As casas e os prédios com suas arquiteturas desencontradas, poucas bem feitas, a maioria mal acabadas, davam a impressão de um cenário lúgubre. O cidadão até saia de casa, às vezes, alegre, mas no trajeto se deprimia. Ligava o som do carro para ver se se animava, mas a alegria somente vinha em forma de esporádicas risadas. No conjunto, tudo era deprimente.
   Nosso cidadão de classe média, meio inteligente, teve sucesso médio na vida. Pagava a maioria de suas contas, às vezes atrasava poucas, mas depois as colocava em dia e assim ia vivendo como bem podia. Sonhava em ter sucesso... um dia! Desejava que esse sucesso não durasse apenas um único dia, mas que fosse permanente. Quinze minutos de fama não lhe eram suficientes. Almejava mais. Daria sua vida por uma vida de sucesso. Faria um pacto com o diabo, desde que, depois, pudesse passar a perna nele para não levar o contrato a cabo.
   — “Entregar a alma não deve ser uma coisa muito agradável”, pensava ele. Ser dilacerado eternamente no inferno não valia a pena por uma vida passageira de sucesso.
   — Mas que diabos! Nem sei se o céu ou o inferno existem!
   Mas na lógica de que existem, daria para tentar um contrato de gaveta com o capeta e depois entrar com um recurso no judiciário do céu para reaver seu precioso bem: a sua alma. E, para ser justo, aceitaria dar, no fim do processo, uma compensação ao satanás: talvez um pedaço da alma a lhe ser restituída antes do fim da eternidade. Seria uma troca justa no seu modo de pensar. Afinal, a sua vida já era quase um inferno, que mais o diabo podia querer? A sua alma inteira?
   Seus pensamentos foram interrompidos por uma freada brusca. Um cachorro vira-latas de rua atravessou seu caminho. Seu bom reflexo salvou uma vida, mas estragou seu carro. O motorista que vinha atrás não teve o mesmo bom reflexo e chocou-se na traseira. Após uma breve discussão, — trocas de insultos com seus respectivos pedidos de desculpas —, acertaram-se, trocaram dados, endereços pessoais, telefones e seguiram seus caminhos para não atrapalhar o trânsito, afinal, os danos não haviam sido consideráveis pois estavam em baixa velocidade. Chamar a polícia para quê? Perder mais tempo ainda não estava em seus planos. Já estava atrasado para o trabalho. A idéia de usar essa desculpa para não ir trabalhar lhe era atrativa e lhe passou pela cabeça por um brevíssimo instante, sendo logo esquecida.
   O motorista que acertou sua traseira — pensou ele — era um potencial amigo e não podemos desprezar os futuros amigos. E a culpa não foi dele, apesar de que a culpa é sempre de quem bate atrás. Porém, nosso cidadão de classe média sempre tem aquela esperança interna de quebrar os paradigmas da sociedade, de quebrar as regras contratuais não explícitas vigentes, e assim, ter um momento de generosidade, pois a generosidade faz com que nos sintamos grandes. E foi assim que ele se sentiu no momento ao perdoar o motorista traseiro: um grande ser humano.
   Ao chegar ao trabalho, enfrentou os problemas de sempre: estacionamento, colegas mal-humorados, a estafante rotina, café frio, a demorada espera para o fim do expediente, almoço em tempo reduzido, um chefe intolerante, outro chefe bonzinho, subordinados que lhe achavam ser um chefe intolerante, outros subordinados que lhe achavam ser um chefe bonzinho, e assim ia levando a rotina recorrente.
   Mal sabia ele que este era seu último dia.
   Ao retornar a casa, voltando pelo mesmo caminho deprimente, encontrou a pacata cidadã mulher do seu vizinho lhe esperando em frente. Ele parou o carro na entrada e desceu para conversar com ela. Aos berros, ela lhe disse que estava farta, que já tinha lhe avisado para não mais limpar o sapato no pátio dela. Sacou de um revólver e lhe deu seis tiros no peito.
   O estopim fora acesso de manhã e passou o dia inteiro queimando na cabeça da vizinha.
   O barril explodiu em cheio no peito do cidadão... seis vezes... e ele caiu morto com o sapato meio sujo ainda.

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