sábado, 13 de dezembro de 2025

A Contenda

   Tudo começou por causa de mulher, mas no fundo não passou de um engano.

   Gervásio da Silva Santos namorava a irmã mais nova e Geraldo dos Santos Silva namorava a irmã do meio de uma família de sete irmãs. Todos no vilarejo, a princípio, imaginavam que não era a mesma irmã, pois os pais das sete eram bastante rígidos com essas questões de moral: "não permitimo sem-vergonhice, nossas fía são pra casá".

   Gervásio ia de manhã cedo cortejar a sua irmã (sua irmã das sete que era namorada dele, no caso) e Geraldo ia no fim da tardinha "tentar pegar" a sua irmã (sua namorada dele, também), pois aquele trabalhava e este não.

   Um sabia do outro, mas sabiam de falar, o popular diz-que-diz-que.

   Tudo começou porque alguém entendeu errado e espalhou que os dois namoravam a mesma irmã.

   Todo boato nunca ninguém sabe quem começa!

   As duas eram parecidas fisicamente e, provavelmente, esse alguém viu um com uma e o outro com outra, mas julgou que fosse a mesma irmã.

   Comentários à boca miúda cresceram, a fama de corno começou a colar nos dois porque na boataria crescente não se sabia quem era corno de quem. Uma parte do vilarejo dizia que Gervásio era o corno, a outra parte jurava que Geraldo é que é o corno.

   Essas confusões são típicas quando o maligno governa a estupidez humana e a estupidez humana é infinita e ilimitada. Foi uma confusão maligna dos diabos.

   Gervásio, que não aguentava mais os olhares de chacota, foi o primeiro a tirar satisfações com a sua irmã dele. Esta negou veementemente dizendo que não passava de um terrível mal entendido.

Geraldo não deu muita bola para o ocorrido, pois sempre foi meio "tiatino" e só queria meter-se dentro da sua irmã dele. Essa idéia de "é pra casá" não passava nem de longe nos seus pensamentos.

   Logo seguiu que, numa bela noite, como não podia ser diferente, os dois se encontraram no bar do vilarejo e já afetados pelo álcool começaram a entreolhar-se. Os integrantes do bar perceberam a animosidade crescendo e, como sempre, jogaram lenha na fogueira... a estupidez humana é capaz de coisas inimagináveis e sem noção, tudo sempre "foi por brincadeira".

- Olha, o corno ali; disse um para Gervásio.

- Olha, o corno ali; disse outro no ouvido de Geraldo.

   Grupinhos foram se formando, cada qual de um lado na esperança de que a coisa, talvez, descambasse numa briga para diversão dos presentes e acontecesse alguma coisa - qualquer coisa - que tirasse o tédio do vilarejo, pois brigas de casais, barranqueamentos de égua, meninos estuprando galinhas ou namorando leitoas e coisas do gênero já eram de costume.

   Além disso, os dois grupinhos ansiavam que alguém desse início a uma contenda para que eles mesmos pudessem tirar satisfação com seus desafetos. Estavam cansados de se matarem esporadicamente e de traição. Por si nenhum tinha coragem suficiente de falar a verdade, mas se odiavam pelas costas e faziam chacotas falsamente pela frente, geralmente em questões de futebol, ídolos, coisas superficiais. As discussões dominantes eram sempre sobre dinheiro e/ou sexo.

   Sentado de um lado do bar, Gervásio, mais suscetível, já olhava o seu suposto rival com um misto de raiva e curiosidade. Geraldo, por sua vez, sentado numa mesa do outro lado do salão, estava mais preocupado com a bebida e com as mulheres bonitas da vida do que com qualquer outra coisa, mas começou a ficar desconfortável com as encaradas feias de Gervásio.

   Babateou num esforço conseguindo erguer-se apoiado na mesa já meio tonto da bebida. Foi lentamente e trançando levemente as pernas em direção evidente à Gervásio.

- Olha lá, é agora, vai acontecer; disseram uns em voz baixa e pensaram outros em voz alta.

   Geraldo, porém, perdeu-se no meio do caminho esquecendo porque levantara e desviou o rumo em direção ao balcão para abastecer-se de bebida sendo que seu copo na mesa estava meio cheio.

   Houve alguns murmúrios de decepção dos jogadores de lenha que gostam de ver a fogueira do circo pegar fogo.

   Gervásio, que percebeu a movimentação, induzido pelos outros aos sussurros de "vai deixar assim" e "se fosse eu tirava satisfação", levantou-se num rompante - dizem que o álcool dá coragem - e foi ao balcão sentar-se ao lado de Geraldo. Entreolharam-se, mas logo desviaram o olhar fixando para a frente como se um quisesse ignorar a presença do outro.

   O silêncio foi geral.

   Depois de uns dois minutos de silêncio constrangedor entre os dois e silêncio de expectativa entre os demais, Gervásio pediu uma bebida. O barman, que havia até desligado o rádio porque não queria surrupiar as atenções, atendeu mais que prontamente o pedido e voltou rapidamente à sua posição de observação cuidadosa.

   Gervásio, olhando fixamente para frente, sorveu um gole para molhar a garganta. Geraldo, olhando fixamente para frente, acompanhou o gesto como se respondesse: Estou atento!

   Mais uns dois minutos de silêncio total, nem moscas ou respirações se ouviam. Até as moscas acompanhavam a situação pousadas no balcão, nas mesas, nos frequentadores, etc.

   Os dois tinham quejanda índole de não se meterem em brigas - os populares covardes -, entretanto, a coisa começou a beirar ao ridículo e os murmúrios foram quebrando o silêncio juntamente com as moscas voando já sem interesse na briga, mas com uma certa decepção e indignação em relação aos dois:

- E aí, vão brigar ou não?

- Bzzzzzzz.

- Estou perdendo meu tempo aqui.

- Zzzzzz...

- Tomara que briguem logo ou vão embora de uma vez.

- Bzzzzzzzzzzzzzzz.

   E entre murmúrios e tapas tentando espantar as moscas e provocar a briga - não necessariamente nessa ordem - os dois acabaram por sendo esquecidos no meio do balcão e o bar/salão retornou à sua habitual rotina.

   Geraldo e Gervásio começaram a conversar um oferecendo bebida ao outro ao mesmo tempo.

   Pediram desculpas um ao outro ao mesmo tempo também.

   Um todo encagaçado do outro.

   Geraldo, que já estava mais "alto" do que Gervásio, entabulou a relação:

- Sobre aquilo... é verdade?

- Não sei; respondeu Gervásio; eu namoro a Chica.

- Eu namoro a Guta; retorquiu Geraldo enquanto os dois se olharam na cara pela primeira vez.

   Mais alguns segundos de silêncio seguido de outro gole mútuo com olhar perdido para frente.

- Então foi tudo um mal entendido mesmo!

- É o que parece.

- E os maledicentes doidos para que a gente se matasse.

- É o que parece.

   Depois de uns cinco minutos de conversa os dois pareciam velhos amigos se reencontrando depois de anos.

   Os dois grupinhos perceberam a animação e inicial amizade sincera e isso provocou desconfiança seguida de raiva, pois aguardavam que dali surgissem dois líderes que dariam início a uma matança generalizada, o que de fato aconteceu, mas não da maneira que todos esperavam.

   O grupo de Gervásio, vamos dizer assim, chamou-o puxando pelo braço para seu canto dando-lhe uma refrega verbal enérgica:

- Que negócio é esse?!?

- Virou amiguinho dele?

- O cara pega tua mulher e tu vira corno manso?

   Gervásio explicou tintim por tintim a situação, mas não surtiu efeito:

- E tu acreditou nisso?

- Tu sabe que ele tem fama de malandro!

   Gervásio, inutilmente, explicou, desenhou, explicou o desenho da explicação... disse com veemência que ele namora a Chica e Geraldo namora a Guta, não são a mesma irmã.

- E você acredita nisso?

- Então da onde surgiu essa conversa se é só um boato?

- Boatos sempre tem um fundo de verdade; afirmou um do alto de sua sabedoria de botequim.

- Vai ver ele está pegando as duas; sentenciou outro.

   Gervásio, ante à estupidez humana, desistiu da conversa, levantou à socapa e, na cruzada em direção à saída do salão, fez um aceno de cabeça para Geraldo, ao que Geraldo respondeu sorrindo sem mostrar os dentes, mas com grande satisfação por terem desfeito o mal entendido.

   O grupo de Geraldo, vendo aquilo, caiu em cima dele com as mesmas argumentações do grupo de Gervásio. Tanto assim que Geraldo também saiu à sorrelfa deixando seu grupinho confabulando.

   Entre acusações mútuas de um grupo para outro, mas sem ser entre eles, somente acusações internas, ou seja, um grupinho não escutava o que o outro dizia. As acusação eram as mesmas e superficiais. Animosidade recolhida, recalques mil, rancores guardados e catalogados no coração, tudo isso crescendo esperando aquele estopim que daria início a uma confusão maligna dos diabos que ninguém queria, mas a estupidez humana é um prato cheio para a maldade. Como bem disse Aristóteles: "A estupidez é a base da maldade".

   O álcool sempre foi um lubrificante social na história da humanidade, desde que consumido com moderação... mas o problema é esse: essa tal moderação geralmente não é alcançada.

   No outro dia, passada a bebedeira, fica a vergonha do que foi dito. Apesar de que todos tentam esquecer das bobagens que falam e fazem quando embriagados pelo álcool, um estúpido sempre insiste em lembrar o outro:

- E tu que disse aquilo?

- Ah é, e você que disse aquiloutro?

   E assim os estúpidos vão alimentando a própria estupidez até que chega num momento em que a vergonha mútua é tanta que os estúpidos decidem agir. Burros não pensam, agem. E agem fazendo besteiras.

   Muitas vezes as ilusões daquilo que não foi dito, mas poderia ter sido dito porque é bem típico do outro dizer essas coisas, essas ilusões vão crescendo na mente dos estúpidos até que a histeria toma conta e eles passam a acreditar que isso aconteceu de verdade.

   A vergonha do que foi dito sem nunca ter a intenção de dizer ou de cumprir é um poderoso afrodisíaco para a maldade. Vão se alimentando tais pensamentos na cabeça até que os estúpidos se convencem de que isso aconteceu de verdade:

- Ele disse isso, eu escutei, eu tava lá; sendo que nem de perto é verdade, mas o estúpido histérico diz mentiras com uma convicção que convence todo mundo, pois ele mesmo está convencido de que isso aconteceu de verdade.

   Todo estúpido é sem noção!

   E o mundo está repleto de estúpidos, Deus deve gostar deles, pois os faz em quantidade.

   Ou, talvez, o diabo aprendeu a dar vida e começou a fazer estúpidos. Mas estou tergiversando.

   O fato é que as animosidades foram crescendo alimentadas pela vergonha do que foi dito e repetido inúmeras vezes na embriaguez.

- Agora cumpra o que disse;

- Ah é, e você também!

   E assim os estúpidos vão se induzindo e manipulando-se num parasitismo mútuo, mas nenhum quer ser o líder porque sabem que, entre estúpidos, quando a coisa esquenta e pega fogo, os liderados correm em debandada deixando o "líder" queimar na fogueira, mas continuam "dando apoio moral".

   Então procuram alguém com audácia, confundindo esta com a coragem. O audaz, neste caso, é um impostor, pois finge ter uma coragem que não tem. Gervásio e Geraldo são audaciosos e são estúpidos, bem como os demais que são somente estúpidos, contudo, nenhum tem coragem. 

   O caráter, basicamente, nasce da prática de uma atividade, por exemplo, se uma pessoa acostuma-se a falar mal dos outros pelas costas, torna-se um mentiroso. Ignorar que a prática forma o caráter é coisa de estúpidos e agindo assim já não é possível deixarem de ser o que são e acabam se matando sem nem saber o motivo pelo qual estão se matando.

   O ser humano nunca precisou de bons motivos para se matar, qualquer um serve, se for inventado melhor ainda!

   Até torcer por um time de futebol contrário ao seu é motivo para a humanidade se matar!

   E os estúpidos ainda dizem:

- Não foi por causa de futebol, ele me ofendeu!

- E como começou a discussão?

- Foi por causa que ele fez pouco do meu time de futebol.

   E os estúpidos ainda insistem que o motivo da morte, da separação, do fim da amizade, etc, não foi o futebol ou a religião ou a política.

   Cá, por fora dos supostos cornos, ainda tem a questão de um grupinho torcer para um time e outro, para outro time, mas nesse caso tem pouca relevância.

   No outro dia, Gervásio e Geraldo encontraram-se na rua principal do vilarejo, apertaram as mãos, deram um meio abraço de lado, tipo um encosto de ombros, e ficaram conversando com sua mansuetude habitual.

   O vilarejo logo saiu à rua para ver a cena.

   Olhares e comentários de desagravo, e raiva até, surgiram.

   As expectativas tinham sido quebradas de modo irremediável.

   Alguma coisa tinha de acontecer para fazer a vergonha do que fôra dito sumir.

   Tomados por uma súbita audácia, ainda desesperados com a vergonha que tinham sofrido e abespinhados com a situação, atribuíram aos dois a suposta armadilha de que tinham sido vítimas, de que tinham sido induzidos a falar o que falaram. Na cabeça deles, os dois não assumiram a liderança que lhes foi imposta "naturalmente".

   Quatro se achegaram atrás de Geraldo e cinco se achegaram atrás de Gervásio, todos exigindo explicações. O grosso do vilarejo assistindo, um grupo de um lado, outro de outro lado da rua.

   Geraldo e Gervásio, atônitos, tentando explicar novamente o mal entendido, mas os dois grupos começaram a culpá-los chamando-os de traidores, respectivamente.

   A coisa ficou tão absurda que os dois, com o passar dos dias, tiveram que trocar de lado, ou seja, Geraldo passou a ser o "líder" do grupo que era seu contrário e Gervásio passou a ser o "líder" do outro grupo, que antes era seu contrário.

   A mágoa dos estúpidos foi tanta que cada qual teve de se proteger no grupo contrário porque os seus grupos originais queriam matá-los.

   A confusão maligna foi crescendo. O estopim foi que um magriço conhecido como Palito resolveu tirar satisfação com um desafeto seu que era do outro grupo. Como a coisa tinha ficado estruturada acintosamente agora como se os dois grupos fossem duas gangues ou, mais precisamente, dois bandos, os estúpidos criaram "coragem" para tirar satisfação com seus desafetos, sendo que nada tinha a ver com os grupos em si ou com seus "líderes", os pretextos eram esses, mas tudo era somente um motivo para matar ou dar uma boa surra nos seus desafetos.

   Palito juntou dois e foi com eles afrontar seu desafeto. Agora tinha uma boa desculpa e uma boa escora para sua covardia.

   Na tarde daquele mesmo dia, estava o desafeto sentado em frente à sua casa.

   Palito e os dois chegaram de surpresa pelo lado já dando pauladas no desafeto.

- Dá na cabeça.

- Não deixa levantar.

- Bate na cabeça.

   Entre pauladas, chutes, pontapés e socos, foram praticamente uma dúzia de pauladas na cabeça do coitado.

   Deixaram-no caído inerte e foram embora.

   O desafeto, agora já morto, tinha um irmão e dois primos, cujos agora faziam parte do grupo contrário.

   E assim a coisa foi crescendo tanto de um lado como de outro. A cada morte os grupos cresciam.

   Os anos foram passando, o vilarejo foi crescendo até tornar-se uma cidade pequena.

   A briga entre os dois bandos trouxe dividendos financeiros ao vilarejo, trouxe "progresso", dinheiro e fama na região.

   A fama dos dois bandos foi crescendo também e tornaram-se conhecidos na região até que a Polícia teve de intervir. As mortes já somavam 546: 412 dos bandos e 134 inocentes de balas perdidas e enganos por confusão de parentesco ou amizade.

   A matança, bem como os bandos, cresceram exponencialmente, praticamente uma progressão geométrica. Em questão de um ano a coisa tomou proporções bíblicas.

   A sorte é que a coisa não caiu nas garras da grande propaganda, aquilo que chamam de grande mídia, senão teria ficada gravada totalmente distorcida no imaginário popular, os heróis virariam vilões e vice-versa.

   Gervásio e Geraldo, às vezes, encontravam-se secretamente para conversar e tentar manter a sanidade querendo lembrar de como tudo começou, porém, as vagas lembranças não eram suficientes.

   Com a intervenção da Polícia, formou-se um terceiro bando: o da polícia.

   Apesar de ser agora uma cidade, ainda era interior e contava com somente um destacamento precário com dois policiais. Devido ao elevado números de mortes da matança, a chefia de polícia resolveu intervir junto ao Governador para liberar uma verba cujo destino era fortalecer a polícia. A verba foi liberada, mas, como sempre, menos da metade chegou ao seu destino.

   O destacamento, de dois, passou a ter oito. O bando do Gervásio, após anos de furdunço, tinha 36 integrantes, o do Geraldo 34. Esses números eram rotativos, pois uns morriam, outros entravam, alguns saíam e assim a coisa ia indo. Cada bando chegou a ter mais de 50 integrantes nos tempos áureos.

   Nem todos nos dois bandos agora estavam ali pelas questões iniciais de vingança pura e simples, alguns entravam pela emoção e logo saíam fugindo ao zunir dos primeiros tiros no ouvido ou ao tilintar das facas e facões.

   Alguns, ao saber da melhora na polícia, pularam para o bando da polícia. O bando da polícia não pagava muito bem, mas os outros dois bandos também não, aliás, tinha épocas que ninguém recebia nada.

   Às vezes um dos bandos percorria as ruas da cidade mostrando seu poderio quantitativo e armamentista, tipo um desfile militar. Uma vez deu a coincidência de os dois bandos se encontrarem no meio do caminho. Pensaram que a matança agora seria uma carnificina, porém, cada bando fez de conta que não tinha visto o outro. A tática principal era um pegar o outro de surpresa, confronto aberto não estava nos planos. Fizeram de conta que não tinham se visto mais por falta de saber o que fazer do que por outra coisa, tipo dois cachorros rosnando um de cada lado do portão e quando abre o portão ficam sem saber o que fazer.

   O dinheiro dos bandos vinha, basicamente, de saques, contribuições espontâneas e extorsões. Entre um estupro e outro - apesar de condenarem em público o estupro -, encontravam tempo para saquear fazendo as vítimas se juntarem ao bando contrário.

   O bando da polícia, apesar de uma certa eficiência, limitava-se a prender os integrantes dos dois outros bandos. Com o tempo perceberam que estavam enxugando gelo.

   Decidiram começar a matar. Mas a coisa não deu muito certo porque os outros dois bandos começaram a matar a polícia também.

   O chefe do destacamento decidiu não levar tal fato às autoridades competentes, ou seja, ao chefe e ao comandante da polícia do Estado. A ordem era de somente prender os bandos. Para preservar seu cargo, o chefe do destacamento achou por bem omitir esse detalhe das mortes. De vez em quando fazia uma prisão e comunicava com alarde aos superiores, ficando todo mundo contente.

   Com o crescimento, a cidade passou a ter um Foro Jurídico. O Juiz, um novato querendo mostrar serviço, resolveu adotar a prática de caçadores de recompensa. Autorizou premiação a caçadores de recompensa que caçassem os dois bandos. No início até começou a dar certo, mas o dinheiro público começou a escassear porque o Juiz e o Promotor precisavam de uma academia de musculação para exercitarem-se e os caçadores passaram a não receber muito mais ficando somente uns poucos que tinham inimizades em cada bando e não faziam muita questão de receber um bom dinheiro. O negócio era matança por vingança pura e simples.

   Os dois bandos contra-atacaram oferecendo também recompensa por policiais mortos. 

   A coisa virou mais confusão do que já estava, se é que era possível isso.

   Nesse ínterim, os integrantes dos dois bandos descobriram que os "líderes" encontravam-se secretamente. Isso causou uma comoção e revolta geral.

- Traidores!

   Novamente os "líderes" tiveram que trocar de bando, agora pela segunda vez. Como ninguém mais dava bola mesmo, a troca lenta e gradual foi aceita, até porque a maioria do bando nem ficava sabendo dessas coisas. A unidade inicial perdera-se com o tempo. A moda agora era dizer que fazia parte do bando tal, mesmo sem fazer parte, talvez por um sentimento de participação em grupinhos, talvez porque era bacana ser parte deste ou daquele bando, vá saber o que se passa na cabeça de estúpidos. Muitos morreram por simplesmente dizer que eram do bando tal sem nunca sequer ter passado perto de um dos bandos; era bacana fazer parte, mas não era bacana morrer por causa disso. Mas estúpidos não pensam, agem.

   Após quatro anos, os três bandos competiam em pé de igualdade tanto em números de integrantes quanto em poderio armamentista.

   Às vezes a polícia esquecia que era polícia. Havia uma rotatividade entre os bandos, um pulava de um bando para outro, como um jogador atuando em times rivais.

   A única coisa que não era engraçada nisso tudo era a matança e o sofrimento das famílias.

   Geraldo e Gervásio, agora sem contato, nutriram um ódio mútuo, agora real, não tanto um pelo outro, mas pela situação em si e por não serem capazes de resolvê-la, então, um isolado do outro, passaram a um culpar o outro, gerando um ódio real.

   Como os dois eram semelhantes, tinham idéias semelhantes, os dois, ao mesmo tempo e sem um saber do outro, chegaram à conclusão de que para terminar a contenda de vez, somente um bando chacinando completamente o outro, sem deixar sobreviventes.

   A intenção até era boa, pois os dois queriam terminar com tudo aquilo, mas a execução do plano foi péssima: resultou em mais matança ainda. Como se diz: de boas intenções o inferno está cheio!

   E o resultado foi que um bando não conseguiu eliminar o outro, mas aumentaram significativamente a participação da comunidade, tanto de um lado como de outro e do outro. Agora a coisa estava pegando fogo de novo, como nos bons e velhos tempos.

   Mas nem tudo é um mar de rosas. O bando da polícia agora era conhecido como bando da polícia somente por questão de tradição. Nenhum dos seus integrantes se achava da polícia. O chefe do destacamento fazia uns dois anos que não ia nas emboscadas e nos confrontos. Ficava no gabinete emitindo relatórios falsos de prisão para agradar os superiores e conseguir mais dinheiro e estes, por sua vez, fingiam que nada disso estava acontecendo. O "líder" em campo era o Palito, aquele mesmo do início. Agora estava no bando da polícia. Ele mesmo achava que isso era só um nome, apesar de alguns usarem uniforme ou coletes.

   Gervásio e Geraldo viraram lendas no local porque nunca sofreram um ferimento sequer nos vários confrontos nesses anos.

   Um jornalista avulso que ouviu falar da contenda através de um conhecido seu até tentou fazer uma reportagem, mas desistiu após presenciar um decapitamento com o decapitado ainda vivo, sendo que os decapitadores não estavam rindo nem chorando nem com raiva, foi como se fossem ali comprar cigarro. Arrumou as malas e voltou correndo para sua cidade.

   Na redação do jornal até comentou com os colegas, mas ninguém deu bola porque ele não era da mesma ideologia dos demais.

   Gervásio, aproveitando a captura de um dos contras que havia ficado vivo por milagre, resolveu entregá-lo para a Polícia e receber a recompensa. Nesse meio tempo, ao levá-lo para a Polícia, foi capturado pelo bando de Geraldo, confundido com um caçador de recompensas. O capturado morreu em meio à confusão. 

   Geraldo, reconhecendo seu antigo amigo, resolveu poupá-lo mantendo-o preso e foi ele mesmo entregar o morto do seu próprio bando à Polícia para receber a recompensa.

   No meio do caminho foi capturado pelo bando de Gervásio, também confundido com um caçador de recompensas.

   O resultado final foi que, pela terceira vez, trocaram de bando continuando "líderes".

   Gervásio, preso, foi reconhecido por um dos outros que livrou-o da prisão e propôs que ele fosse o novo "líder" do bando, pois afinal, um bando precisa de um líder. O bando aceitou, pois não sabiam que ele era o Gervásio e se soubessem não faria diferença nenhuma.

   Mais ou menos o mesmo aconteceu com Geraldo. Estúpidos não pensam, agem.

   Quanto aos caçadores de recompensa, o cargo foi extinto pelo Juiz. Os caçadores começaram a trazer corpos de mendigos, de pessoas inocentes, etc, dizendo que eram do bando tal. Ninguém conhecia ninguém mesmo.

   A coisa foi descoberta quando o Juiz viu a foto da sua faxineira desaparecida na relação dos mortos dos caçadores de recompensa. Falaram que ela era a noiva do Gervásio. Rendeu uma ótima recompensa.

   Com o tempo, a contenda foi acalmando-se novamente, a cidade foi crescendo, chegou num tamanho médio e a contenda virou um conflito de bairro. Os integrantes dos bandos foram, aos poucos, cuidando da própria vida. Uns casando, outros cansados de tudo aquilo, e todos nem lembravam mais de como tudo começou. Alguns resolveram partir para o tráfico de drogas, outros para assaltos... enfim, diversificaram.

   Sobraram dois únicos bêbados que faziam a alegria do bairro quando tentavam brigar embriagados tentando manter acesa a chama da contenda. Um se dizia do bando de Gervásio, outro se dizia do de Geraldo. Viraram figuras folclóricas, personagens histriônicos, os malucos do bairro.

   Alguns juravam de pés juntos que esses dois eram os próprios Gervásio e Geraldo.

   O bando da polícia se desfez naturalmente quando os outros dois bandos sumiram.

   A contenda em si caiu no esquecimento e nem uma nota de rodapé ficou sobre ela na história, a não ser os mais de dois mil e trezentos mortos nesses quase dez anos de contenda.