domingo, 7 de fevereiro de 2021

O Bem vem da Razão

   A Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino nos traz vários raciocínios e emoções. Não é à toa que uma das conclusões ali presentes é: O bem vem da razão.

   Posso depreender disso que Santo Tomás referiu-se à razão no sentido de raciocínio e não no sentido de certo ou errado ou outro sentido. Lembrando que raciocínio se refere à concatenação lógica de pensamentos, um pensamento organizado logicamente após o outro. E lembrando que expressamos nossos pensamentos e raciocínios através da linguagem. Porém, o raciocínio em si começa dentro da sua própria cabeça. A linguagem (palavra falada e palavra escrita, basicamente) são expressões físicas do pensamento e/ou do raciocínio. A linguagem é a base pois, grosso modo, raciocinamos e pensamos em palavras. Raciocinamos e pensamos também em imagens, conceitos, etc, mas de uma forma quantitativamente maior isso se dá em palavras.

   Lembrando que o ser humano é um ser racional E um ser emocional. Razão no sentido de raciocínio e Emoção no sentido de emoções em si, sentimentos, desejos, vontades, sensações, intenções, etc, a parte psicológica do ser humano, vamos por assim dizer. Não tem como separar a razão da emoção dentro de um ser humano. Somos assim.

   Porém, tem como causar um desequilíbrio entre razão e emoção e, geralmente, este desequilíbrio vem da perda de raciocínio e esta vem, geralmente, da linguagem. Lembrando que este todo chamado “linguagem” compõe-se de várias partes. Dentro deste signo, desta palavra, do nome desta coisa, temos o raciocínio, a língua, a gramática, a linguística, etc. Aliás, tudo no mundo, grosso modo, é composto de várias partes (as partes que compõem o todo), ou como dizia Aristóteles, os particulares e os gerais, porque um particular também pode ser decomposto em várias partes e assim sucessivamente, mas dentro de um certo limite, senão enlouquecemos. Trabalhar somente com o pensamento de não ter definições, ter as tais determinações, como Marx, e ir desdobrando o objeto até o infinito na intenção de concretizá-lo é a fórmula certa para a burrice e para a insanidade. Você nunca saberá o que é o objeto, irá somente desdobrando até que as tais “determinações” desdobram-se em loucura.

   Lembrando que “objeto” aqui, refere-se às coisas. Coisa é tudo o que existe ou possa existir, de natureza corpórea ou incorpórea, não se refere especificamente aos objetos físicos. Ou, coisa, tudo o que há e tudo o que existe. Tudo o que existe, aí sim, refere-se somente aos objetos que existem fisicamente no mundo. Tudo o que há engloba coisas físicas (corpóreas) e coisas não físicas (incorpóreas). Por exemplo, um lápis há e existe; Liberdade somente há, posto que não existe uma coisa física chamada Liberdade (você não tem como dizer qual o tamanho da liberdade, qual a cor, etc). São os conceitos subjetivos. Lembrando que “subjetivo”, neste sentido, vem de sujeito, tem muito do sujeito ao significar ou definir uma coisa não física. Conceito “objetivo”, neste sentido, vem de objeto, o objeto físico se auto-significa, se auto-define, você extrai as informações do objeto físico. Posso definir objetivamente em palavras um conceito subjetivo, pois a palavra falada são ondas sonoras materializadas e palavras escritas, grosso modo, são a tinta no papel. Aí nossos pensamentos e raciocínios passam a existir fisicamente.

   Lápis há e existe, pois existe fisicamente e ao mesmo há enquanto conceito, há no pensamento, na imaginação, no raciocínio. E tudo no mundo tem um nome, são os nomes das coisas. Olha aí Aristóteles de novo se metendo no meio da conversa. Esse cara é impressionante, vive se enfiando no meio da conversa dos outros.

   Para encerrar essa introdução e passar à Suma propriamente dita, quero deixar um exemplo: “Você tem um lápis aí?” Quando falamos isso, de qual lápis estamos falando? Do lápis que o cara tiver. Não estamos falando de nenhum lápis em específico, mas do lápis que ele tiver, o que é óbvio. Então este objeto físico chamado “lápis” ele, neste sentido, há e existe. E expressamos nosso raciocínio e, muitas vezes, nossa emoção, através das palavras. No meio disso temos as “atitudes (no sentido de comportamento)”, mas isso é conversa para outra hora.

   A Suma, Santo Tomás de Aquino separou-a em questões e artigos. Foi analisando várias questões surgidas da observação da realidade, ele não inventou da cabeça dele, por isso que cada questão se desdobra em vários artigos e cada artigo é separado em itens, soluções, objeções e respostas. Ele analisa cada questão por vários lados, porém, não vai desdobrando até o infinito, pois é impossível trabalhar somente com o pensamento de não ter definições ou de somente ter definições. Todos nós sabemos que tem coisas na vida que tem definições, outras não e outras tem definições um pouco mais trabalhosas e você tem que procurar, muitas vezes, analisar o contrário. Aliás, o simples fato de você trabalhar com o pensamento do contraditório já evita desdobramentos infindáveis. Lembrando que “contradição” é uma coisa diferente de “contraditório”, mas não me estenderei nesta parte.

   Santo Tomás fala em bondade e malícia, ato interior e ato exterior, mal, pecado e a culpa (que são coisas distintas). Discorre quando a bondade é transformada em malícia.

   Tomarei como exemplo várias questões. Não entrarei no mérito das questões, como Santo Tomás, pois isso já está na Suma. Por exemplo, quando você vai dar esmola seu ato interior são suas emoções, sentimentos, desejos, vontades, sensações, intenções, etc. A emoção, a parte psicológica do ser humano. O ato exterior é o ato físico em si: dar cinco reais para um mendigo, largar cinco reais na mão dele.

   Temos então esta situação: dar esmola. A partir desta situação Santo Tomás analisa várias circunstâncias que decorrem. Lembrei agora de Ortega y Gasset: eu, sou eu e minhas circunstâncias.

   Trazendo para a realidade, eu passo ali e dou cinco reais ao mendigo e sigo meu caminho. Na próxima esquina já nem penso mais nisso. Neste caso, meu ato interior foi de bondade, eu quis ajudar. Porém, o mendigo, com os cinco reais na mão, vai tomar uns goles de cachaça. Posso pensar que o mendigo transformou meu ato de bondade em um ato de malícia. Mas Santo Tomás nos esclarece: “Ora, o que num gênero é princípio não é acidental, mas essencial; pois, tudo o que é acidental se reduz ao seu princípio, que é o essencial. Logo, a bondade da vontade depende unicamente do que torna o ato essencialmente bom, isto é, do objeto, e não das circunstâncias, acidentes do ato”. O objeto, no caso, foi o bem do meu ato interior, partiu da minha vontade, eu quis ajudar. Lembremos que, dentro do mendigo (um ser humano racional e emocional), também há o ato interior e o ato exterior. Além disso, nem fiquei sabendo que ele foi tomar cachaça, eu já estava lá na esquina. A culpa não é minha e a culpa não é dele. Mas isso é pecado e isso foi um mal? Para dirimir essa questão, leia a Suma.

   Outra circunstância. Passo ali e vejo o mendigo. Antes de dar a esmola eu penso: “não vou dar cinco reais para esse cara, vá que ele tome em cachaça, não vou sustentar o vício dos outros”. Aí temos um problema. “Sustentar o vício dos outros”. Eu sustento esse mendigo? Ele vive comigo? E se o problema é que ele irá tomar em cachaça, então, raciocine: traga um prato de comida ou, com o dinheiro, compre alguma coisa para ele. Está resolvido o problema. O bem vem da razão.

   Outra circunstância: passo ali e não dou esmola. Qual é o problema? Nenhum. Em outra oportunidade darei. Ou, então, dou esmola sabendo que o cara vai tomar a cachaça dele. Qual é o problema? Nenhum. O cara está ali numa situação sofrível, de repente deu um revés na vida dele, ele não chegou nessa situação por culpa dele. Você sabe disso? Conversou com ele?

Outra circunstância: dou esmola, chego em casa e conto para todo mundo que dei esmola, estão vendo como sou bonzinho? Posso até comentar que dei esmola, mas e o ato interior ao comentar tal fato? Um ato interior que era para ser de bondade eu mesmo transformo em malícia. Caso alguém perguntar, daí falo que ajudei.

   Outra circunstância: digamos que eu fosse um milionário, coisa que não sou. E vou doar 50 mil reais para uma instituição de caridade. Ao doar, levo toda a imprensa comigo. Quero capitalizar em cima, mostrar que sou um “filantropo”, sou um cara bom. A generosidade nos faz sentirmos grandes. Porém, meu ato interior já não é de tão bondade assim. Pode acontecer que já não me preocuparei se o dinheiro será realmente investido para ajudar. Já fiz meu “marketing”. Vai que o pessoal da instituição divida o dinheiro entre eles. Alguém poderá argumentar: “Mas está ajudando, não está?” Há controvérsias. Lembrem de Santo Tomás: “Ora, o princípio da bondade e malícia dos atos humanos procede de um ato da vontade. E portanto, a bondade e a malícia desta se fundam nalguma unidade, ao passo que a bondade e a malícia dos outros atos podem advir-lhes de origens diversas.

   Ora, o que num gênero é princípio não é acidental, mas essencial; pois, tudo o que é acidental se reduz ao seu princípio, que é o essencial. Logo, a bondade da vontade depende unicamente do que torna o ato essencialmente bom, isto é, do objeto, e não das circunstâncias, acidentes do ato”. O objeto, no caso, é o fim, o objetivo.

   “O bem é apresentado à vontade pela razão como objeto; e na medida em que entra na ordem da razão, pertence à ordem moral e causa, no ato da vontade, a bondade moral. Pois a razão é o princípio dos atos humanos e morais, como antes se disse”.

   O bem vem da razão.